SÓ A MULHER PECA
Fritz Lang
1952
Fritz Lang é
um dos maiores gênios da história do cinema, que, por conta do clima da guerra,
especialmente no seu país de origem, a Alemanha, precisou se refugiar no
exterior, e, para manter-se em atividade, foi para Hollywood. O grande artista
Lang, dos lendários Metropolis e M, precisou se adaptar à competitiva fábrica
de sonhos de Hollywood, cujo principal objetivo não é o artístico mas o
comercial. E o curioso é que Lang se adaptou sem maiores percalços. Talvez de
todos os diretores europeus já consagrados que emigraram para Hollywood, Lang
tenha sido um dos que tiveram a carreira mais sólida.
Isso só foi
possível porque seu cinema é visionário (veja Metropolis) mas sempre com os
dois pés no chão. Sonhar acordado; realizar os sonhos possíveis; voar com os
pés no chão. Digo isso, porque considero que essa é a base de Clash by night,
que recebeu no Brasil o pavoroso título de SÓ A MULHER PECA, um filme de 1952
com Barbara Stanwyck e Robert Ryan, além do grande Paul Douglas e particapação
de ninguém menos que Marilyn Monroe.
A meu ver, não
considero que Clash by night seja um filme noir por excelência. Ele está mais
para um melodrama, um triângulo amoroso, entre uma mulher indecisa entre dois
homens: um (Paul Douglas), que lhe dá mais segurança emocional; e outro (Robert
Ryan), um garanhão cafajeste sedutor. Clash by night poderia ser um filme de
Rohmer, em que os personagens perdem-se em devaneios filosóficos e literários
sobre a paixão carnal ou intelectual.
Mas acontece
que Clash by night é filme de Hollywood, em torno não apenas de intenções mas
de AÇÕES. A personagem de Stanywyck está, portanto, dividida entre a razão e o
instinto – tema este que, por sua vez, talvez seja a grande força motriz de
todo o cinema de Lang.
RAZÃO OU
INSTINTO? Parece que para Lang ambos os sentimentos são inconciliáveis. Stanywyck
precisa escolher. Sua escolha, no entanto, é bem mais complexa do que a luta do
bem contra o mal. Stanywyck é seduzida por esse personagem de Ryan, mesmo que
tenhamos certeza de que há algo de sombrio, perverso e cínico nesse homem.
Mesmo com toda a bondade e generosidade do barqueiro representado por Douglas,
talvez isso não seja suficiente para fisgar Stanywyck. Essa personagem age não
segundo os manuais de boa conduta dos filmes americanos que estamos costumados
a ver. É esse elemento que faz com que Clash by night seja um filme moderno:
essa ambiguidade moral dos protagonistas.
Entre a razão
e o instinto, há um elemento que se manifesta desde o princípio: a força da
natureza, por meio das ondas agitadas que batem sobre as pedras, como se vê no
belíssimo prólogo semidocumental sobre o cotidiano dos pescadores quase à la
Flaherty ou à la De Seta. Stanywyck tenta resistir à sua natureza, mas
fracassa. Ela é arrastada pela correnteza. Stanywyck retorna à sua cidade
natal, no interior dos EUA, após fracassar no amor e na vida na grande cidade
americana. Fracasso do American way of life em clima de pós-guerra. Esse
coração amargurado quer curar as cicatrizes com o pacato Douglas mas sente-se
mais à vontade com o cínico Ryan. Até que ponto somos donos do nosso próprio
destino e podemos ir contra a nossa natureza? O desejo é uma força que arrasta
tudo, ou pode ser controlado? Controlá-lo faz bem, ou é ir contra nossa natureza?
Os pescadores domam a natereza para viver, ou deixam ser levados por ela? Viver
é “Deixa a vida me levar” ou construir represas para vivermos em paz? Afinal,
não é esse o projeto civilizatório americano, a conquista do Oeste? Mas dominar
a natureza selvagem é nos domesticar, apagar a possibilidade de viver a chama
da vida intensamente, apenas para ter uma vida em paz como uma família normal, ou
é uma escolha sábia, por um modo de vida mais simples, menos ambicioso, sem grandes
espalhafatos ou aventuras? Devemos arriscar tudo por uma paixão arrebatadora? É
possível que nossa inteligência possa domar nosso coração? O que é amar: é
entregar-se desmesuradamente a uma paixão, ou conviver, construir um ambiente
de em harmonia solidária com o outro? Devemos formar uma família e construir laços
sólidos ou devemos nos engregar à potência de cada momento num carpe diem e viver
sem medidas até perdermos nossas forças?
Talvez no
terço final Lang tenha sobrecarregado demais as tintas no filme, tornando sua
encenação um tanto teatral, especialmente nos diálogos. Acredito que o ponto
mais forte de Clash by night não esteja propriamente no roteiro como
desvelamento das situações e da repercussão da descoberta da traição, mas no
clima psicológico em que pequenos momentos da natureza dos personagens se
sobressaem sobre as conotações moralistas e esquemáticas da trama.
O final rendeu
muitas controvérsias, e muito se especulou que a solução conciliatória tenha
sido uma imposição dos produtores, tendo em vista os rígidos códigos morais do
Hays Code. Mas ultimamente se sobressai a conclusão de que o final foi escolha
do próprio Lang, como o mesmo reforçou em entrevistas. O tom moralizante do
final nos lembra, é claro, do cinema de Rossellini, sobretudo, de Viagem à
Itália, especialmente pela sua opção pelo classicismo. Talvez essa seja a
contriuição de Hollywood para o cinema de Lang. O Lang americano já não é mais
o mesmo Lang de Metropolis, que convivia na Alemanha do entre guerras. Mais
velho e talvez mais amargurado, o velho Lang de Clash by night prefere sonhar
com os pés no chão.
Por isso,
tendo a pensar que a chave do filme são dois momentos, diferentes entre si mas
que se complementam. O primeiro é a maravilhosa sequência no casamento, em que
Ryan se despede do casal, caminha até o ambiente externo da casa, e vê a lua no
horizonte. Ali percebemos que, aconteça o que acontecer, ele nunca será feliz,
ele nunca viverá em paz. (Uma observação: talvez não seja à toa que esse
personagem tão bruto e cínico seja um projecionista de cinema, e que o conflito
final corporal entre os dois machos homens aconteça dentro de uma cabine de
projeção). O segundo está na belíssima personagem de uma jovem Marilyn. Essa
operária que não aceita ser dominada pelo namorado (há uma cena incrível em que
ela dá um murro bem no seu queixo) mas que, ao mesmo tempo, não quer sair da
cidade como Stanwyck, mas quer ficar, casar e plantar raízes.
Esses momentos
nos permitem ver que o retrato que Lang produz desse microcosmo é desenhado de
forma bem mais ampla que a interpretação meramente moralizante da conciliação final
– não à toa que se passa dentro de um barco comandado por Douglas, que se equilibra
e controla as forças da natureza e do instinto. Para Lang, a felicidade é um
leme, em que, com muito trabalho e sacrifício, domamos as correntezas e as artimanhas
do destino, para que não nos despedacemos nas pedras.
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