[JANELA 1] ERA UMA VEZ BRASÍLIA

[Cobertura do X Janela Internacional de Cinema do Recife]


ERA UMA VEZ BRASÍLIA
de Adirley Queirós



Em pouco tempo, Adirley Queirós foi alçado a um dos principais nomes da nova geração do cinema brasileiro. Com A Cidade é uma Só? e Branco Sai, Preto Fica, Adirley, sempre a partir de um lugar de fala ligado à violência urbana de Ceilândia e à crítica ao projeto elitista de Brasília, consolidou-se como um dos principais representantes de uma geração pela forma singular como combina ficção e documentário para abordar diretamente o momento político brasileiro. Um cinema político que nunca procurou meramente informar ou mesmo vitimizar seus personagens atingidos por um contexto social de exclusão.

Branco sai, preto fica incendiou o Festival de Brasília em 2014, em que os personagens propõem não propriamente narrar seu cotidiano de mutilações mas reinventá-lo a partir de uma investigação dos seus imaginários, do que “eles podem”. Era possível se unir e bolar um plano, o de explodir Brasília. Era o cinema do “vem pra rua”.

Mas por trás da irreverência da “dança do jumento” e da cativante presença de Marquim do Tropa e do atrapalhado Dildu, muitos não enxergaram uma outra camada em Branco sai, preto fica: o de um filme contemplativo, que dialoga com a ficção científica ao criar um cenário pós-apocalíptico quase que desertificado, com uma certa tendência à rarefação. Na saída das sessões, não era raro ouvir comentários do tipo “o filme é incrível, mas tem uma parte que se arrasta e que não funciona tão bem”.

Agora, depois da consagração de Branco sai, preto fica, o que fazer? Com Era uma vez Brasília, Adirley propõe um gesto corajoso que esclarece muitas das intenções de seu filme anterior, pela forma como rejeita o que naquele havia de mais simpático e agradável aos olhos do espectador-zumbi, e pela forma como abraça incondicionalmente o que estava apenas sugerido.

No debate após o filme, Adirley diz que “muita coisa mudou de Branco sai até hoje. É preciso ver que perdemos o jogo. Estamos imobilizados.” Adirley afirma que este é um filme bem diferente de Branco sai, ao romper com seu clima de otimismo. Se a mudança no seu cinema foi radical, é preciso ao mesmo tempo constatar que pouco mudou. Era uma vez Brasília é uma continuidade do cinema anterior de Adirley mas avança por um outro caminho. Se não é o filme que as pessoas esperavam, azar o delas.

Aqui, permanecemos sob o território do Ceilândia, e no diálogo entre o documental e o ficcional (mais propriamente a ficção científica) para refletir sobre o processo político brasileiro sob o ponto de vista de pessoas à margem do processo. Personagens e situações do filme anterior retornam – o cadeirante, o mensageiro intergaláctico, etc. Mas, desta vez, Adirley propõe um quase total esvaziamento das motivações dos personagens e da estrutura narrativa. Surpreende que Adirley, dada a gravidade do momento político em que vivemos, recuse o tom claramente militante e aposte num filme de tom introspectivo, de planos longos e praticamente sem diálogos. Os personagens vivem num angustiante cenário melancólico, quase que paralisados, em constante ritmo de espera por um suspense que nunca chega a se consumar. Era uma vez Brasília é quase o prólogo de um filme que nunca vem - o prólogo desse suposto filme que se anunciaria desde o final de Branco sai – mas Adirley opta por recusar esse suposto “segundo ato de desenvolvimento” e se mantém nesse cenário claustrofóbico e desértico de espera e de agonia continuada. Laconismo, rarefação, desesperança, tons rítmicos que dialogam com o cinema brasileiro dos anos setenta, mas sem desespero, sem catarse, sem gritos ou corpos nus.

Era uma vez se desenvolve em pequenos momentos de espera, quase como um filme composto de pequenos planos autônomos, em que a ideia de presença ou performance domina os contextos narrativos ou psicológicos. O contexto político do impeachment está sempre em segundo plano, no rádio como uma voz-over, já que os personagens nunca falam sobre ele. O viajante intergaláctico vive numa nave extremamente apertada que mais se parece uma prisão. Não há nada a fazer a não ser esperar e efetuar pequenos gestos que não levam a nada. Quando monta uma arma para matar seu algoz, é com “um escapamento de um carro e uma bombinha de São João”, como afirmou o próprio diretor. O filme combina cenas em pequenos interiores claustrofóbicos com amplos planos gerais da cidade de Brasília, sempre noturnos, sempre semi-desérticos. Uma nave, uma ponte, um metrô, uma rua, quatro personagens, um desejo de cinema. Basta, não há nada mais!

Ao mesmo tempo, há um precioso e rigoroso trabalho de construção cinematográfica, um refinamento estilístico claro em relação aos seus filmes anteriores. Som, arte, fotografia, atores e direção unem-se de forma orgânica, com uma contribuição artística de notável excelência e de grande contribuição artística. Às vezes, ficamos até tentados a achar que o tom preciso cai num certo preciosismo e que talvez o filme seja belo demais para o que retrata, e talvez pudesse ser mais despojado. O extremo rigor formal das composições é mais um recurso que faz escapar do tom do naturalismo ou do despojamento.

Nesse momento tenebroso em que vivemos, muitos esperavam que o novo filme de Adirley gritasse a plenos pulmões “Fora Temer!”. Talvez a grande frustração na recepção de boa parte das pessoas tenha sido o dessa reversão de expectativas. Adirley não fez o filme claramente militante que se esperava dele. Se estamos todos abatidos, sem energia e sem esperança, esperávamos que Adirley viesse nos remobilizar para pegar as armas e continuar na resistência (??!!). Ao final do filme, os quatro personagens permanecem unidos mas talvez nem tanto para militar mas para simplesmente poder sobreviver. Estão tão fracos que não conseguem pensar em um plano. Talvez a cena síntese seja desse carro pegando fogo, enquanto todos olham atônitos, sem poder esboçar uma reação. Adirley não se deixou instrumentalizar pelo atual momento político, mas criou uma obra que dialoga com ele mas levando-o para outro lugar, o do cinema, o da arte, o da reflexão-criação.

Era uma vez Brasília é um filme noturno, passado num deserto pós-apocalíptico chamado Brasília. Como o cinema pode reagir a um cenário de crise? Adirley certamente não quis fazer um panfleto, ou, segundo ele, queria a todo custo fugir “da publicidade”. Mas o que fazer? É como se Adirley tivesse “sentido o golpe”. Não propõe nada, não é contra-cíclico, não se perde em promessas de esperança nem deseja fazer uma radiografia racional do nosso momento histórico. Ainda é possível fabular o nosso imaginário? Ou apenas nos devemos consumir pelo fracasso, pela impotência diante da proximidade do fim? Adirley só vai poder responder a essas questões fazendo outros e outros filmes. No início desse texto, fiquei pensando no filme como uma mistura entre Mad Max e O Anjo nasceu, mas agora me ocorre que o último filme de Adirley é mais uma mistura de Morte em Veneza e Corrida sem fim. Estamos sob o nevoeiro. De qualquer forma, me parece absolutamente corajoso e saudável que Adirley rompa com vários dos estereótipos ligados ao seu cinema, realizando um filme que só poderá ser compreendido daqui a muitos, muitos anos. Como se fosse uma nave intergaláctica, que vai pousar algum dia, sabe-se lá quando e onde.

Era uma vez Brasília e Zama são dois filmes contra “o princípio da esperança”. São filmes sobre o nosso fracasso.
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Comentários

Unknown disse…
Boa ikeda!
Acho um grande filme !

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