Os múltiplos olhares do cinema camaleônico de Andrea Tonacci
Em janeiro/2006 organizamos uma retrospectiva da
obra de Andrea Tonacci por ocasião da Mostra do Filme Livre. Na época - antes
da estreia de Serras da Desordem - Tonacci ainda era conhecido apenas pelo seu
longa BANG BANG e pelo média BLA BLA BLA. Assim, a Mostra foi bastante
importante para mostrar o trabalho de Tonacci para além desses dois filmes. Por
isso, em dezembro/2005 escrevi um longo texto sobre a filmografia do Tonacci. Esse
texto foi escrito há mais de 10 anos. De qualquer modo, como um abraço
carinhoso àquele que, naquela época, me abriu seus arquivos e seus filmes,
republico este texto aqui no meu blog. O texto foi publicado no Catálogo da MFL
2006, e depois em setembro/2006, no site da Revista Etcetera, com o adendo de
um texto sobre Serras da Desordem. Em 2011, no aniversário de 10 anos da MFL,
ele foi republicado no livro FILME LIVRE!, uma coletânea de textos dos catálogos
das MFLs. Não sei se o texto ainda vale a pena, mas o estímulo para republicá-lo
veio de uma conversa com o Carlos Alberto Mattos, a quem muito agradeço por ter
se lembrado desse velho texto. Tonacci, obrigado por tudo! Os filmes, sempre
eles, permanecem! BAN-ZAI!!!
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Os múltiplos olhares do cinema camaleônico de Andrea Tonacci
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Os múltiplos olhares do cinema camaleônico de Andrea Tonacci
Um cinema camaleônico
Quarenta anos após sua estréia no cinema, com a realização
do curta Olho Por Olho, Andrea Tonacci acaba de finalizar seu segundo
longa-metragem de ficção, o esperado Serras da Desordem. Este, então, torna-se
momento mais que oportuno para a realização de uma retrospectiva da obra desse
diretor italiano-paulista-brasileiro que continua sendo pouco visto e ainda
menos compreendido.
Depois da positiva recepção do mitológico Bang Bang, Tonacci
teve que esperar mais de trinta anos para ter a oportunidade de rodar um novo
filme de ficção. Mas nesse intervalo o diretor nunca se manteve inativo e, como
um camaleão que muda de cor para sobreviver às ameaças de seu habitat natural (e
a megalópole do pequeno cinema brasileiro é muitas vezes mais árida do que a
caatinga plena), foi buscar alternativas para o prosseguimento de seu projeto
de cinema, fugindo dos estereótipos do “cineasta marginal” que tanto o
perseguem desde a estréia de Bang Bang. O filme passou a ser a coroação e o
martírio de Tonacci desde então. Porque se de um lado marcava a presença do
diretor na história do cinema brasileiro, por outro, Tonacci passava a ser um
autor à sombra de sua obra. Estigmatizado pelo impacto do filme, Tonacci
passava a ser “o autor de Bang Bang”, ao invés de simplesmente ser “autor”.
À margem dos marginais, Tonacci foi buscar alento no contato
com o outro. Refugiou-se primeiro no exterior, entre o Irã e a França, onde
acompanhou a turnê internacional da peça de teatro de Victor García produzida
por Ruth Escobar, dando origem ao longa documental Jouez Encore, Payez Encore
(Interprete Mais, Pague Mais). Por tratar de forma crua o turbulento processo
de criação da peça, concentrando-se nos bastidores de sua produção, Tonacci
enfrentou resistências para a exibição do filme, culminando com sua interdição.
Apenas na década de noventa, o longa, remontado (sua duração foi reduzida de
120 para 70 minutos), pôde voltar a ser exibido, mas permanece inédito
comercialmente.
Em seguida, uma longa pesquisa sobre a questão do olhar
desembocou no contato com a cultura indígena, praticamente “ameaçada de
extinção”, num Brasil desenvolvimentista em que os índios eram vistos, pelo
governo militar, como “entrave ao progresso brasileiro”. Numa cultura ainda não
contaminada com o aparato tecnológico do audiovisual, o olhar indígena ainda
poderia ter um frescor, um senso de novidade? A pesquisa propiciou um contato
que gerou o longa documental Conversas no Maranhão, em que, se os índios ainda
não tinham o controle dos equipamentos de cinema, eles poderiam ter voz para
narrar suas adversidades e contar sua história desde tempos imemoriais. A
poesia e a linguagem do “ter voz” rapidamente foram combinadas com a urgência da
questão política, em especial da demarcação das terras indígenas. Política,
poesia e linguagem.
A questão indígena prosseguiu com a série Os Arara.
Originalmente produzida em três partes, apenas as duas primeiras foram exibidas
na TV Bandeirantes, sendo que a terceira, em exibição na Mostra, nunca foi
completamente finalizada, e permanece inédita. Na série, Tonacci acompanha o
drama da nação Arara, não-contactada (isto é, sem contato com a “civilização”),
que teve suas terras partidas ao meio com a construção da Transamazônica. Em um
constante crescendo, de forma asfixiante, Tonacci vai desvendando os interesses
em torno da construção da rodovia e tenta um inédito contato com os índios
hostis, mediado por um sertanista da FUNAI.
Após a realização de Os Arara e vendo fracassadas suas
tentativas de dirigir mais um longa, restou a Tonacci a realização de
institucionais para que pudesse continuar na ativa. Por trás do academicismo
dos projetos de encomenda, o diretor exercita a linguagem do audiovisual por meio
de uma combinação de ritmos, imagens e sons de forma singular. Dentre estes,
estão em exibição na Mostra, Brasil Bienal Século XX, Theatro Mvnicipal de São
Paulo e Biblioteca Nacional.
* * *
Quatro olhares
Vendo a obra de Tonacci como um todo, é possível identificar
quatro grandes linhas, quatro olhares em torno das quais a camaleônica
filmografia do diretor se divide:
A primeira é o olhar experimental, que coincide
cronologicamente com o início de sua filmografia, e é a sua vertente mais
conhecida. Dela faz parte seu primeiro curta-metragem Olho Por Olho, e o
primeiro longa-metragem Bang-Bang.
A segunda seria o olhar metalingüístico. Tonacci, através do
cinema, sempre refletiu sobre o próprio processo de criação da obra de arte,
inserindo uma auto-reflexividade que dialoga diretamente com o cinema como ato
de construção de um discurso, contra a invisibilidade típica da narrativa
clássica. Dessa vertente, integram Blá Blá Blá, um dos primeiros filmes que
aborda o complexo tema de como os meios de comunicação perpetuam um discurso de
massa, e Interprete Mais, Pague Mais, que se concentra nas turbulências em
torno dos bastidores de uma peça de teatro, em processo de ser encenada. Mais
recentemente, dentro de seus vídeos institucionais, Pra Ver TV Tem Que Ficar
Ligado recupera a participação da TV na construção de uma sociedade brasileira,
dando voz a defensores e críticos de sua estrutura de funcionamento.
A terceira é a do olhar antropológico, tendo como foco a
questão indígena. Conversas No Maranhão é um dos primeiros filmes brasileiros a
dar voz aos nativos, retratando seus costumes e rituais praticamente fadados à
extinção, graças à arbitrária atuação dos “órgãos competentes”, responsáveis
pela demarcação das terras indígenas. Em seguida, a série Os Arara, ao buscar
um inédito contato com a tribo dos Araras e ao denunciar o descaso das
autoridades locais na construção da Transamazônica.
A quarta envolve os trabalhos de encomenda, os
institucionais. Optamos em chamá-la de “um olhar por trás da encomenda”. Com
isso, queremos apontar para o fato de que, ainda que não sejam típicos do
diretor, são trabalhos em que existe um olhar que se esconde por trás do
academicismo do formato do institucional. Esse olhar se revela pela presença da
montagem, pela inventividade da associação entre imagem e som, e pela forma
como se apresenta um desejo pela linguagem. Nesse grupo se inserem Brasil
Bienal Século XX, Theatro Mvnicipal de São Paulo e Biblioteca Nacional.
Por fim, cabe destacar que essa classificação é simplesmente
um parâmetro, não devendo ser vista como uma categorização. Por exemplo, Blá
Blá Blá é um filme que oscila entre a vertente experimental e a
metalingüística, assim como Brasil Bienal Século XX, ainda que possua um olhar
institucional, dialoga com a vertente metalingüística por revelar um olhar
panorâmico sobre a evolução das artes plásticas brasileiras no século passado.
É dessa forma que retomo ao início deste texto. Os quatro
olhares se fundem, representando na verdade um mesmo olhar, o olhar de seu
autor, Andrea Tonacci. No fundo, cada filme revela aspectos desses quatro
olhares, ainda que em um caso uma forma de olhar se sobressaia em relação às
outras. É assim que deve ser visto o camaleônico cinema de Andrea Tonacci: um
cinema de múltiplos olhares.
O Olhar Experimental
OLHO POR OLHO
O primeiro curta de Andrea Tonacci já apresenta um diretor
em contato com uma proposta de cinema moderno, que se diferencia tanto da
tentativa de um cinema industrial ou mercadológico, de um lado, quanto do
cinema denso e político típico do cinema novo. Na verdade, “Olho Por Olho”
relembra o frescor dos primeiros curtas de Godard e Truffaut e o impacto
criativo dos primeiros filmes da nouvelle vague francesa. Os trejeitos de
Daniele Gaudin e de Fabio Sigolo poderiam ser os de Jean Seberg e Jean-Paul
Belmondo em “Acossado”: a forma como ela põe e tira os óculos para compor um
tipo de femme fatale contemporânea, ou como esse anti-galã joga um jornal no
meio da rua após passar os olhos pelas manchetes. O esvaziamento da rotina
desse grupo de “quase-adolescentes” é retratado pelo diretor sem os devaneios
existenciais de um outro tipo de cinema. Há, ao invés disso, apenas a captação
do instante: o aqui e o agora. A estética, essencialmente moderna, abre espaço
para a duração de um tempo real, mas entrecruzada com vigorosos jump cuts e com
uma câmera na mão que dá ao filme uma leveza, um tom descontraído. Os planos
longos, o descompromisso, o tédio já são elementos que associam o diretor a um
certo esboço de cinema marginal, mas já aqui percebe-se a proposta particular
de Tonacci: por trás da inventividade da linguagem, há um olhar, urbano e
jovem, um percurso em torno de uma certa geografia do centro de São Paulo, e
uma certa melancolia no incessante percurso de automóvel desse grupo de jovens
que falam sem parar, mas que por outro lado permanecem muito distantes de
trocar uma única palavra um ao outro.
Bang Bang
Começando por seu próprio título, o primeiro longa de
Tonacci pode ser visto como uma espécie de paródia aos filmes policiais
hollywoodianos. Mas Bang Bang não é Matar ou Correr: nele, as convenções do
cinema de gênero são utilizadas com um propósito quase oposto ao da chanchada.
A idéia de um “cinema popular” se desfaz com a busca de um cinema radical que
estilhaça os signos típicos da narrativa clássica e do próprio cinema de
gênero. Se há um fiapo de estrutura narrativa (um homem – Paulo César Pereio –
foge da perseguição de um trio de bandidos), ele existe apenas no sentido de
oferecer uma “falsa pista” ao espectador. Em Bang Bang, não sabemos quem são os
personagens nem para onde eles vão, muito menos de suas motivações. O que
importa é sua existência como uma idéia de percurso. E o desejo pela trajetória
o torna um filme essencialmente moderno: o sem-número de seqüências na estrada
faz de Bang Bang quase um road movie ao avesso. Mas se existe uma idéia de
movimento, acentuada pela expressão cênica do trio de bandidos, em todo o filme
existe uma paralisia, um sentido de imobilidade, reforçado pela estética
rigorosa de Tonacci, com a ênfase na câmera parada e em planos extremamente
alongados. Seu humor e sua irreverência logo passam a assumir um viés duplo,
espelhando uma certa melancolia. Com isso, por trás de alguns códigos do
chamado “cinema marginal” (o deboche, a irreverência, a rejeição radical dos
códigos narrativos convencionais, o tom de “feios, sujos e malvados” do trio de
bandidos), Tonacci apresenta características que o afastam de qualquer rótulo,
afirmando um cinema cujo extremo rigor o torna quase como se essa paródia
tresloucada estivesse sendo dirigida por Jean-Marie Straub.
O olhar metalingüístico
BLÁ BLÁ BLÁ
Em “Blá Blá Blá”, um dos trabalhos mais consagrados de
Tonacci, existe uma curiosa contradição interna que cria a força ímpar desse
trabalho: todo o filme é baseado num longo discurso que se contrapõe
radicalmente ao próprio discurso do filme. Isto é, ao mesmo tempo em que o
discurso do político decadente representado por Paulo Gracindo serve como fio
condutor, fica nítido que o discurso do autor do filme é completamente oposto a
ele. Toda a construção de “Blá Blá Blá”, portanto, parte da vigorosa
contestação a uma voz incessante que permeia o filme. Parte-se, assim, de uma
negação, isto é, da negação da legitimidade de um discurso das supostas elites
do país. A decadência do poder do político é combinada pelos tropeços de sua
própria voz, que ao fim surge cambaleante, enfraquecida. O discurso do filme,
ao contrário, cresce em dimensão, fazendo sucumbir a imponência do discurso do
político decadente. Através da linguagem do cinema, Tonacci vai construindo uma
crítica interna a esse discurso, por meio de imagens, sons e da presença ativa
da montagem de Geraldo Veloso.
Além disso, “Blá Blá Blá” é um dos primeiros filmes
nacionais a levantar a questão da participação dos meios de comunicação de
massa como forma de perpetuação das estruturas de poder. O político utiliza a
televisão e o rádio como forma de afirmação de seu poder, como meio de
prolongar o alcance de seus ideais. A forma como Tonacci filma o discurso desse
político mostra a consciência metalingüística de seu cinema: a câmera de
Tonacci baila entre as câmeras de TV, enquanto a cenografia e a fotografia em
preto-e-branco reforçam a solidão e a decadência do político. Bailando, a
câmera (e a mise-en-scene) desvelam que, por trás das câmeras de TV, registram
a voz do político, há outra câmera (a de Tonacci), que apresenta outro tipo de
discurso, que está sendo construído em paralelo ao discurso oficial. Com isso,
“Blá Blá Blá” serve como reflexão do próprio processo cinematográfico como
discurso, cujo processo de construção se desvela minuciosamente ao longo do
filme.
Interprete Mais, Pague Mais
O fim do mito da ingenuidade da natureza da obra de arte
Recebendo um convite de Ruth Escobar para cobrir a turnê
internacional da peça de Victor Garcia, Tonacci tem a oportunidade de realizar
seu primeiro longa documental. De um lado, o projeto está em direta em
continuidade com “Blá Blá Blá”, no sentido de examinar as contradições internas
de um discurso desvelada à medida em que acompanhamos seu próprio processo de
construção. De outro, afasta-se da radicalidade da investigação tipicamente
experimental e não linear que caracteriza a primeira fase de sua filmografia, e
que “Blá Blá Blá”, em seu inconformismo, ainda herda.
“Interprete Mais, Pague Mais” segue as regras de um estilo
do cinema documental: o cinema direto, em que a câmera apenas registra os
acontecimentos como se buscasse uma sensação de neutralidade, com o mínimo de
intervenção ou mesmo a realização de entrevistas. Ainda no início dos anos
setenta, Tonacci já usa uma câmera de vídeo, sendo um dos pioneiros no Brasil a
vislumbrar certas vantagens do vídeo em relação à película cinematográfica.
Mesmo com base nos princípios do cinema direto, Tonacci não é tão ingênuo: em
não raros momentos do filme, percebe-se que, por trás do estilo de neutralidade
da câmera, sua simples presença influi diretamente nos acontecimentos, pelo
simples fato de que as pessoas têm total consciência de que estão sendo
filmadas. Por se tratarem de artistas, pessoas intimamente relacionadas com o
processo de criação (inclusive vários atores), a consciência da presença da
câmera torna-se ainda mais evidente. Isso fica explícito na seqüência final, em
que há uma enorme “lavagem de roupa suja” entre a equipe da peça, e muitas
vezes os participantes apontam para o fato de que isto não pode ser registrado
para uma câmera.
O projeto de “Interprete Mais, Pague Mais” surgiu a
princípio quase como uma espécie de filme institucional sobre a peça de teatro.
Mas a acuidade da visão de Tonacci faz com que rapidamente esse trabalho
alcance um âmbito mais pessoal, revelando-se uma contundente reflexão sobre os
bastidores de um processo artístico em construção, em que surgem as
divergências pessoais, os egos, as vaidades e a árdua tarefa do ser humano em
tentar viver em comunidade. Com isso, alcança um status metalingüístico: por
trás de seu próprio processo de construção, o cinema de Tonacci revela um outro
processo artístico, análogo, também sendo preparado. No processo teatral, surge
um paralelo que pode abranger a própria natureza do cinema, entre suas
necessidades comerciais e artísticas: de um lado, o pragmatismo da produtora
Ruth Escobar; de outro, os delírios artísticos do diretor Victor Garcia; e
entre eles, a instabilidade, a paixão e o processo de entrega dos atores. Por
trás das necessidades e dos anseios de cada um desses três grupos, Tonacci
revela, algumas vezes de forma até cruel, a difícil tarefa de materialização do
processo artístico. Com isso, o diretor foge do enfoque romântico em que o
processo de criação geralmente é visto: “Interprete Mais, Pague Mais” está mais
para Precauções de uma Prostituta Santa (de Reiner Werner Fassbinder) do que
para A Noite Americana (de François Truffaut). Além disso, ao retratar, e ainda
de forma documental, o processo material de uma obra artística sendo feita,
Tonacci se insere num debate sobre a natureza da representação, quebrando o
mito da invisibilidade da autoria típica da narrativa clássica hollywoodiana.
Revelar que a arte traz, em seus bastidores, um complexo processo de interesses
em torno de sua produção, é revelar, quase de forma brechtiana, que a luta de
poder e suas bases materiais refletem diretamente no resultado final do
espetáculo. Essa é contribuição experimental e política que sutilmente se
revela por trás do naturalismo do filme.
A versão atual – o filme foi reduzido dos originais 120min
para meros 70min para que pudesse ser exibido publicamente – reduz o impacto de
algumas das cenas mais turbulentas. Ainda assim, percebe-se a influência da
montagem na composição da estrutura do filme. Em particular, desponta uma tênue
influência da estrutura ficcional sobre a base documental. A influência
ficcional, como não pode ser vista através da mise-en-scene, entra no processo
de montagem. Tonacci, de forma sutil, divide seu material em blocos,
estabelecendo relações entre os “personagens” e, de forma até bem humorada,
cria efeitos que estimulam o surgimento de uma espécie de clima de suspense,
valorizado pelo uso da música e de recursos como a exploração dos olhares e dos
silêncios.
Mas por trás da porção metalingüística de “Interprete Mais,
Pague Mais”, ainda é possível ver o filme com um alcance mais amplo: como a
luta pelo poder faz emanar, em grupo, aspectos um tanto sórdidos da natureza
humana – o egoísmo, a rivalidade, a vaidade. Ainda que o sucesso da exibição da
peça, ao final, tenha a função de apaziguar os ânimos e o impacto crítico da
obra, é difícil sair inocente de uma exibição do filme.
O olhar antropológico
A antropologia e o olhar do outro
Conversas no Maranhão: o “dar voz” e o não-didatismo do
registro
Com a volta ao Brasil após a realização de “Interprete Mais,
Pague Mais”, Tonacci deu início a uma pesquisa sobre a questão do olhar. Pouco
a pouco, sua área de interesse acabou cruzando com a cultura indígena. Qual
seria o olhar possível dos índios, cuja cultura ainda não estava contaminada
pelo domínio amplo do audiovisual na sociedade contemporânea? Com isso, acabou
chegando à tribo dos Timbira orientais e filmando “Conversas no Maranhão”. O
filme surgiu como uma forma de a tribo poder expressar para as autoridades sua
insatisfação com a demarcação de suas terras e a negligência da FUNAI em
relação aos interesses da tribo. Dessa forma, o filme seria uma espécie de
“carta filmada” ao Governo Federal. Dessa forma, a maior importância do projeto
era “dar voz” aos índios. Se os índios ainda não pudessem ter o controle do
equipamento para imprimir o seu olhar, o filme seria um primeiro passo no
sentido de essa cultura ter “uma voz”, uma representação mais autêntica.
O olhar de Tonacci em “Conversas no Maranhão” é um olhar
antropológico. A câmera serve como registro, mais que elemento para compor um
discurso. Entra-se dessa forma em contato com o outro. A câmera participa dos
rituais da tribo mas sempre mantendo uma distância respeitosa. Se a câmera
funciona como registro, o olhar proposto pelo filme nunca é meramente
descritivo, e foge do didático. Ou seja, funciona tanto contra a folclorização
da cultura indígena quanto contra um processo educativo em que se “traduz” os
rituais indígenas segundo uma função meramente didática. É permitido ao
espectador apenas aproximar-se da tribo, manter “um primeiro contato”.
Convivendo com a tribo, o espectador desenvolve a possibilidade de ter um outro
olhar, um olhar novo. Um olhar sempre respeitoso, mas que trata esse “olhar
outro” de forma orgânica, e nunca esquemática.
Por outro lado, a própria convivência com a tribo traz à
tona a questão política. O contato com o homem branco é irreversível, e a tribo
precisa falar a língua do branco para defender seus interesses, em especial em
relação à demarcação das terras. A poesia e o registro desse olhar
antropológico são substituídos pela urgência desse olhar político, pela
necessidade de uma “voz” que defenda a sobrevivência física da tribo.
O fim do mito da ingenuidade do olhar
O final de “Conversas no Maranhão” resume a proposta de
Tonacci. Num longo plano seqüência, um índio narra para a câmera o conflito com
os fazendeiros. Subitamente, um homem branco bate as mãos em frente à câmera,
um sinal que, na linguagem própria dos sets de filmagem, significa que o
negativo da câmera está prestes a acabar. Imediatamente o índio pára, limpando
a garganta e conversando com o diretor sobre o fim do rolo. O filme se encerra.
Dessa forma, Tonacci opta por um final em aberto, que teve o
seu término naquele momento apenas porque o filme precisa ter um fim, porque os
recursos materiais disponíveis para a realização do filme terminaram. Com esse
final sem conclusão ou “moral da história”, Tonacci afirma a perenidade desse
olhar, sua natureza essencialmente inconclusiva.
Mas o final é tão exemplar porque, além disso, revela uma
total consciência desse indígena sobre a natureza da linguagem própria do
cinema. De um lado, sua plena consciência de que estava sendo filmado. Essa
voz, portanto, não é mais uma voz ingênua, mas, ao contrário, é uma voz consciente
do processo de representação típico do cinema. O “contato com o outro” passa a
ser uma via de mão dupla: o indígena, mediante o contato com a equipe de
filmagem, pôde apreender os códigos do cinema de forma intuitiva, ainda que não
tivesse um ensinamento formal. Ali, consciente de que não era mais filmado,
porque soube interpretar um código particular que indica o fim do rolo de
filmagem, o índio pára seu discurso, descansa, espera o carregamento de um novo
chassi para continuar. Ou seja, há a consciência da construção de um discurso
cinematográfico, com regras próprias, e não mero registro da realidade. O olhar
não é mais ingênuo: o índio tem total consciência de que fala para o
espectador, e não para a equipe de filmagem. (Marcelo Ikeda)
A série Os Arara: a função do mediador e o desejo de
aproximação
A proposta de um olhar que busque de forma progressiva essa
aproximação com o outro ganha um outro contorno na série “Os Arara”. A
princípio, o documentário funcionaria quase como uma reportagem sobre a tribo
dos araras, que viram suas terras, que lhes pertenciam desde tempos imemoriais,
serem partidas ao meio com a construção da Transamazônica pelo Governo Militar.
O conflito entre a tribo e a empresa construtora da rodovia se agrava porque a
tribo é composta de índios “não-contactados”, isto é, que não tiveram um
primeiro contato com o homem branco. Vendo suas terras serem invadidas, os
índios reagiram por meio de ataques, recebendo a denominação de “índios
hostis”.
Tonacci vai para o Pará, onde o foco dos conflitos se
agrava, por volta do Km 120 da rodovia, com o interesse por esse olhar ingênuo,
por um olhar não-contactado pelo “império do audiovisual”. Mas aqui não é
possível “dar voz” aos índios diretamente, simplesmente porque não se mantém um
contato direto com eles. É possível ter a visão do conflito apenas a partir do
ponto de vista de um mediador, um homem branco, sertanista da FUNAI. A partir
desse mediador, todo o percurso do filme, pelo interior da mata, é de uma
aproximação com o outro, já desde o seu início, que mostra uma viagem de avião,
percorrendo a mata e aterrissando à beira do primeiro acampamento. Temos,
então, apenas “o lado de cá”: ao contrário de “Conversas no Maranhão”, não é
possível entrevistar os índios, registrar seus rituais. Os índios têm voz
apenas a partir de um mediador que é um estrangeiro à sua cultura, um homem
branco.
A partir dele, no entanto, temos “uma voz”, que expõe os
interesses da tribo e da “civilização” com desconcertante nitidez. Pouco a
pouco vão sendo revelados os interesses em torno da construção da rodovia, vão
sendo desvelados os preconceitos do governo militar, em que os índios são
vistos como obstáculo ao “desenvolvimento do país”. A Transamazônica, partindo
uma selva ao meio, é vista como símbolo de progresso pelas autoridades locais,
mas rapidamente percebemos os interesses financeiros em sua construção: de um
lado, da empresa construtora da rodovia, por outro, da indústria madeireira (as
imagens de tratores derrubando árvores próximas à área de preservação indígena
são as mais impactantes da série).
A estrutura em blocos da série, aliada à funcionalidade da
montagem de Juracir do Amaral Jr., é toda construída em direção à aproximação,
num crescendo asfixiante. A dinâmica desse crescendo mostra a consciência de
Tonacci em relação às características de um projeto de TV, com a necessidade de
blocos e “ganchos” para atrair o interesse do espectador. Pouco a pouco,
chegamos cada vez mais perto do contato com a tribo. No primeiro episódio (“Os
Arara - Parte I”), a equipe chega à Transamazônica, instalando-se num primeiro
acampamento, e tentando um primeiro contato, que no final acaba fracassado. No
segundo, a equipe avança ao Km 120, no “olho do furacão”, onde um ataque da
tribo arara a um pequeno posto da FUNAI acaba de acontecer. O sertanista
mediador da FUNAI explica os motivos que levaram os índios a atacarem o posto.
Mas a parte III, que permanece inacabada, revela a grande
surpresa que coroa o projeto final de Tonacci: o contato com os índios hostis
revela-se possível. Finalmente há o registro do contato da equipe de Tonacci
com os araras. Ao contrário do mito dos índios hostis, selvagens e cruéis,
espalhado pelas autoridades locais, o que se vê é a surpresa mútua: de um lado,
dos índios, ao ver os equipamentos, as fotografias, os costumes do homem
branco; de outro, da própria equipe, ao captar a surpresa e a reação dos
indígenas. A câmera registra o primeiro olhar desses índios, que desconhecem
inteiramente os mecanismos de construção da linguagem audiovisual. Esse duplo
olhar mútuo de surpresa recebe a companhia de um outro olhar, complementar a
esses: o olhar incrédulo do espectador. É quando, enfim, o longo percurso de
realização da série “Os Arara” pode se completar.
O olhar por trás da encomenda
A dinâmica interna dos “institucionais”: geografia física
versus processo orgânico
Ao longo dos anos noventa, Tonacci encontrou, como
alternativa para continuar exercendo seu ofício de diretor, a realização de
projetos de encomenda, através de filmes institucionais. Mesmo esbarrando nos
inevitáveis limites desse tipo de trabalho, que está preso a um sem-número de
convenções em seu formato de apresentação, em que o diretor tem uma margem de
autonomia relativamente estreita, ainda assim Tonacci imprime sua marca como
realizador, de forma sutil, nas entrelinhas do processo de criação. A voz-off,
francamente didática e redutora, não partiu de Tonacci. Em geral, o diretor
trabalhou com um texto previamente estabelecido, a não ser em “Biblioteca
Nacional”, composto de depoimentos de personalidades que, em geral, (com raras
exceções, como a do escritor Sérgio Sant´Anna) acabam produzindo o mesmo
discurso oficialesco que o das vozes em off.
A margem para o processo de criação de Tonacci, portanto,
foi especialmente a escolha das imagens e dos sons, e principalmente, a forma
de combinação entre esses dois elementos. Em “Brasil Bienal Século XX”, projeto
realizado para a Bienal de São Paulo de 1992, Tonacci acompanha a evolução das
artes plásticas brasileiras no século XX a partir de um mergulho radical no
universo das obras propriamente ditas. Grande parte do institucional é coberta
por uma profusão de cores, texturas e formas, quase de forma caleidoscópica. A
câmera percorre os quadros com um vigor de novidade, revelando pequenos
detalhes das obras, expostas no museu. Essas imagens são combinadas com
depoimentos de artistas contemporâneos em seu local de criação artística,
permitindo uma pausa na apresentação do fluxo ininterrupto das imagens. Tonacci
também foi hábil em inserir imagens com obras cinematográficas, permitindo um
diálogo indireto entre o cinema, a sociedade e as artes plásticas do período. À
medida em que, cronologicamente, aproxima-se da época atual, as cores e
texturas vão ganhando uma maior dinâmica rítmica e visual, em combinação com o
próprio processo de versatilidade da arte contemporânea.
A concepção de “Theatro Mvnicipal de São Paulo”, projeto do
Ministério da Cultura, parte de pressupostos similares. Tonacci fez uma leitura
do Theatro como uma “obra viva”, focando, dessa forma, a apresentação das peças
em si. Ora, o Theatro apenas faz sentido quando uma peça é apresentada em seu
palco, ou ainda mediante a apresentação e a revelação de seus artistas. Com
isso, Tonacci faz um mergulho na recriação dessas apresentações, com um painel
extremamente diverso, que abrange desde a música clássica e a ópera até chegar
à música popular. Mais que estrutura física ou fonte histórica, o Theatro ganha
vida apenas durante suas apresentações. Na metade do institucional, no entanto,
Tonacci destaca a beleza arquitetônica da construção, permitindo uma pausa para
novamente retomar o fluxo das apresentações. A forma como Tonacci une a
arquitetura do lugar com a organicidade das apresentações ilustra a valorização
do “dar vida à matéria inanimada”: um plano geral da escadaria principal do
Theatro é combinado em fusão com o próprio local sendo palco de uma
apresentação da Banda Sinfônica do Agreste. O que era mero espaço físico inerte
ganha vida com a presença da arte, com a dinâmica da apresentação viva.
Em “Biblioteca Nacional”, há uma diferença de concepção
vital em relação ao “Theatro Mvnicipal”. Enquanto este ganha vida a partir de
suas apresentações, na Biblioteca Nacional persiste um sentimento de
imobilidade, como um grande depósito de saber e fonte de consulta. Dessa forma,
Tonacci valoriza a geografia física da Biblioteca Nacional, retratada como se
fosse um templo grego, com contra-plongées que valorizam a altura e a amplidão
de suas salas e seus corredores. Aqui, o projeto é ao contrário: um tom sombrio
e quase misterioso é revelado a partir de uma imobilidade, de uma ausência de
movimento interno. Os depoimentos, com os entrevistados sentados, imóveis,
reforçam o sentido de paralisia. E de forma indireta acaba nos fazendo refletir
não só sobre o estado de inércia da instituição como da própria cultura
brasileira, num sentido mais amplo.
Uma síntese: Serras da Desordem
Serras da Desordem é o projeto mais autenticamente pessoal
de Tonacci desde a realização de Bang Bang. Contemplado por um edital de baixo
orçamento do Ministério da Cultura e por editais como os da Petrobrás e da
Secretaria de Cultura de São Paulo, Tonacci realiza um projeto que se revela
uma espécie de síntese de sua filmografia. Serras mescla ficção e documentário
para reconstituir a trajetória do índio Carapiru que, ao ver sua tribo dizimada
por um ataque às suas terras, acaba entrando em contato com o “mundo dos
brancos”. Através dessa história, Tonacci reúne aspectos dos quatro tipos de
olhares de sua filmografia, descritos anteriormente.
O olhar antropológico surge em Serras da Desordem a partir
de mais uma versão do contato entre o mundo indígena e o do homem branco. Os
primeiros quinze minutos do filme, que mostram a tribo de Carapiru antes do
massacre, revelam a maestria de Tonacci no desvelamento de uma intimidade do
cotidiano da tribo poucas vezes vista antes no cinema. Utilizando de forma
sábia a portabilidade das câmeras minidv, Tonacci registra com grande leveza e
precisão técnica os rituais cotidianos dessa tribo, como uma espécie de síntese
de um olhar sobre a questão indígena que desponta desde Conversas no Maranhão,
ou seja, que coroa uma trajetória de três décadas debruçando-se sobre o tema em particular. A câmera
registra aos moldes do cinema direto, como em Conversas, mas nesse início não
há o tom político de Conversas ou de Os Arara, e sim um tom de um lirismo
idílico que nos remete a Tabu, de Murnau e Flaherty, mas que será bruscamente
partido com o massacre da tribo.
O olhar metalinguístico se faz presente na complexa
articulação entre os elementos ficcionais e os documentais da narrativa. Tendo
como base um fato real, a linguagem documental está presente em todo o filme,
partindo da escolha de Tonacci em tornar Carapiru o protagonista de sua própria
história. Mas no mesmo instante em que se realiza um documento dessa história
por meio de um diretor de cinema (um homem branco) que por definição é um
elemento externo a essa história, já se está recontando, ou seja, está-se
criando uma nova história. Daí a vocação ficcional de Serras como um corolário
desse olhar antropológico e como ênfase de um discurso ético sobre a
possibilidade de um ponto de vista sobre os acontecimentos, e não de uma
“fidedigna reconstituição”. Na mesma medida em que Serras se pretende
um registro de um acontecimento real, o filme reflete sobre a sua própria
impossibilidade de eco-lo, ou ainda, critica, em sua própria estrutura, a
“verdade” de seu discurso. Mais que “reconstituição” da história de Carapiru, o
filme se propõe a econta-la segundo um ponto de vista, o do diretor. Dessa
forma, os elementos de linguagem de Serras são cuidadosamente arquitetados para
criar essa cumplicidade entre o documental e o ficcional, que se complementam,
formando um tipo de relação dialética reforçada pela montagem. Os elementos
documentais estão presentes de diversas formas: na pesquisa histórica, na
seleção e combinação das imagens de arquivo sobre a época e sobre como a mídia
retratou o acontecimento à época (mais um elemento de metalinguagem) e na
própria coleta de depoimentos, seja explicitamente mostrados no filme seja
através de uma voz-off (em especial a participação de Sidney Possuelo, que faz
mais um paralelo com o percurso de Tonacci na série Os Arara). Já os elementos
ficcionais surgem a partir da busca por uma estrutura tipicamente narrativa,
como uma extrapolação dos princípios de caracterização de personagens, tempo
narrativo, conflito, busca de suspense e clímax, já apresentados em Interprete Mais,
Pague Mais. Carapiru surge como um personagem a partir do qual o espectador
busca uma identificação, ainda que extremamente complexa. A forma ambígua como
Tonacci trabalha a identificação em torno de seu protagonista mereceria um
estudo à parte, dado o paradoxo desta condição. O espectador de Serras,
tipicamente um homem branco, se identifica com um indígena. Além disso, há um
nítido contraponto com o próprio discurso do diretor, ou com a afirmação de seu
ponto-de-vista, como anteriormente descrito. Outro aspecto é que a
identificação é possível ainda que Carapiru não seja o dono de sua própria
história e que ele quase “não tenha voz”, como apresentaremos mais adiante. Por
isso, a identificação é ambígua, pois ainda que ela seja improvável strictu sensu,
ela é possível latu sensu, já que índios e brancos são não apenas membros da
“civilização humana”, mas são ambos vítimas de sua colonização. Portanto, a
forma ímpar com que Tonacci combina elementos ficcionais e documentais no
desenvolvimento de Serras coroa um processo de pesquisa sobre a possibilidade
de registro de uma cultura outra (seu conhecimento de causa da questão
indígena) que afirma um pressuposto ético, apontando as inúmeras limitações
desse tipo de construção.
O olhar experimental se deriva daí, a partir do desejo do
realizador por um cinema de busca de uma linguagem particular, sendo ainda
extremamente contemporâneo e instigante na forma como combina o documentário e
a ficção. O diálogo com seus primeiros filmes a princípio parece distante, mas
um olhar mais atento pode revelar esses paralelos. Como em Bang Bang, Serras é todo
centrado em uma estrutura narrativa de busca-e-fuga e por um desejo por uma
idéia de percurso (físico, geográfico, humano, existencial): daí podemos
pensá-lo como um road movie às avessas, da mesma forma que Bang Bang. O desejo
pela linguagem através de um trabalho criterioso com seus elementos (a
narrativa, a montagem, a fotografia), a conjunção entre um tempo e um espaço
peculiares e a recusa por um cinema eminentemente mercadológico evidenciam seu
diálogo com um olhar experimental.
Por fim, o diálogo com seus projetos de encomenda é visível
a partir de três elementos. Em primeiro lugar, na participação ativa da
montagem ao longo do todo o filme, inclusive nas passagens em fusão, bastante
presentes em seus institucionais, especialmente em Brasil Bienal Século
XX. Segundo, pela habilidade no uso da tecnologia digital. A fotografia de
Serras combina, de maneira extremamente inventiva, imagens de arquivo (em
diversos suportes e diferentes condições de preservação), película 35mm e
digital, dando-lhes uma unidade cromática surpreendente. Em terceiro, pela
combinação criativa das imagens de arquivo. Destaca-se uma impressionante
seqüência de montagem em que, por trás de um samba, descontrói-se de forma
implacável o projeto desenvolvimentista brasileiro, ou ainda o “sonho de
progresso” de uma civilização. Os institucionais forneceram a Tonacci um manejo
técnico e uma reflexão sobre as características da tecnologia digital, tanto na
captação das imagens quanto no trabalho de pós-produção, indispensáveis à
realização de Serras da Desordem
Serras da Desordem é uma espécie de síntese da filmografia
de Tonacci porque a articulação entre esses quatro olhares revela um olhar
único, como se todas essas peles revelassem um único camaleão. É um filme cujo
intenso rigor deixa claro que se trata de um projeto de vida, que apenas foi
possível devido a um profundo conhecimento de causa do diretor pela questão
indígena, trabalhado ao longo de cerca de trinta anos. Além disso, seu primor
técnico, em que condições extremamente precárias de produção foram somadas às
naturais dificuldades de finalização (Tonacci tinha mais de 50 horas com fitas
em diferentes suportes), comprova a maturidade técnica e estilística de seu
realizador. Como já dissemos anteriormente, Tonacci sempre foi um pioneiro no
uso das tecnologias digitais no cinema brasileiro.
A partir da história individual de Carapiru, o ambicioso
projeto de Serras da Desordem propõe uma investigação do percurso de uma nação,
de um cinema brasileiro, de um país. Carapiru é, de certa forma, um mito de
origem da nação brasileira, um habitante primevo de Pindorama. O percurso de
Serras é portanto o do fim de um sonho, ou do massacre de uma possibilidade de
resistência pacífica. Todo o percurso de Serras, que em última instância pode
ser associado à própria trajetória da filmografia de Tonacci, é pela busca de
um paraíso perdido. Mas o que nos comove (e o que nos atemoriza) é que Carapiru
não é dono do seu próprio destino, ele é apenas guiado pelas circunstâncias. Ou
ainda, em todo o filme, ele praticamente não tem voz. No filme, Carapiru é um
personagem de si mesmo: sua história é contada através de outro, no caso,
através de Tonacci. Aqui, ao contrário de Conversas no Maranhão, o índio
Carapiru não tem voz: é como se Tonacci reiterasse que a cultura indígena não
pode ter voz a partir do cinema ou da mídia, uma fabricação de uma cultura que
não é a dele (remetendo a uma discussão do cinema como dispositivo conforme os
estudos de Baudry). Por outro lado, em certa medida, Serras é um prolongamento
do final da série Os Arara. Tonacci enfim consegue realizar um contato profundo
com a questão indígena, mas é como se acabasse concluindo que o contato por si
mesmo é impossível. Por outro lado, a passividade de Carapiru é consciente: ele
“se deixa aprisionar” pelos brancos em seu primeiro contato com a civilização,
e em nenhum momento oferece resistência. Tonacci não retrata Carapiru como
herói: ele é um mero sobrevivente. Ao mesmo tempo, o trunfo de Serras é abordar
a questão sem nenhum pieguismo, ou ainda com um discurso panfletário, ou
vitimizador. O tom documental funciona como uma espécie de anteparo às
tentações do melodrama, que foge ao completo das intenções do diretor.
Mas sem dúvida ao final de Serras prevalece uma certa
melancolia. O claro paralelismo entre a primeira cena do filme, que mostra a
idílica tribo de Carapiru antes do massacre, e a penúltima cena, quando
Carapiru afinal retorna ao que restou de sua tribo, ressalta a destruição de um
modo de vida e de uma cultura. O estilo de Tonacci em registrar ambas as cenas
é o mesmo: o do cinema direto. Mas o olhar das crianças agora é diferente. Elas
vivem num mundo que não é mais o seu nem é o dos homens brancos.
Por fim, Tonacci fecha Serras da Desordem com uma
explicitação de seu olhar metalinguístico. O índio Carapiru foge da tribo e
entra na mata fechada, e encontra ninguém menos que o próprio Tonacci, uma
figura branca e esguia, como se fosse Herzog perdido no meio da Floresta
Amazônica. Tonacci fecha o tom cíclico de Serras com uma dobra sobre o tempo.
Carapiru, na última cena do filme, representa o que é na verdade a primeira
cena de Serras. Nessa cena, uma segunda câmera revela a primeira câmera do
filme (a de Aloysio Raulino), isto é, a que tínhamos visto na primeira cena do
filme. Filme-dentro-do-filme, o final de Serras, mais que ser um corolário
metodológico sobre as premissas do cinema de Tonacci, desvela a essência de
Serras da Desordem: a de ser um encontro possível (entre filme e personagem)
entre todos os desencontros desse percurso.
* * *
Tendo finalizado o árduo processo de realização de Serras da
Desordem, Tonacci encara um novo desafio, talvez tão grande quanto o da
realização do filme: a sua exibição e o seu lançamento comercial. De forma
artesanal, em sua produtora, busca a projeção do filme em alguns festivais
internacionais e conversa com alguns distribuidores, tentando um lançamento nas
salas de cinema ainda em 2006, de olho nos recursos do Prêmio Adicional de
Renda disponíveis para os distribuidores e em futuros editais de
comercialização da Petrobrás, ou mesmo de São Paulo.
Como seu personagem Carapiru, Tonacci é um estrangeiro,
vindo da Itália para tentar a sorte no Brasil. Mas Tonacci fez uma espécie de
caminho oposto ao de Carapiru, partindo da civilização em busca de um contato
com o frescor do olhar do outro, o desvirginado olhar do índio. Agora, está de
volta à caótica metrópole de São Paulo. Assim como Carapiru, ele está de volta
à sua tribo. O que lhe resta? Enquanto junta um conjunto de notas para
finalizar a prestação de contas de Serras, Tonacci negocia o lançamento do
filme e resgata papéis antigos para formular um novo projeto para enviar para
os editais públicos, o típico caminho de quem faz cinema no Brasil. Talvez
Tonacci tenha uma diferença em relação à Carapiru: enquanto este tem sua
história contada em um único filme, a história de Tonacci deve ser buscada em
seus próprios filmes, enraizada de forma profunda em meio à mata cerrada. Quem
a descobrir, por decerto buscará a inspiração para fazer outras, e mais outros.
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