(Tiradentes 2016) Filme de aborto
FILME DE ABORTO
de Lincoln Péricles
Confesso que escrevi e reescrevi esse texto mas estava
fugindo ao essencial. Vamos a ele. É preciso escrever esse texto com a mesma
urgência e com o mesmo desespero, com a mesma solidão e com a mesma honestidade
de que trata o filme.
O que gera meu espanto diante de FILME DE ABORTO, de Lincoln
Péricles?
É a forma como encena sua solidão e seu desespero.
Lincoln apresenta seu filme a partir do seu lugar de fala: é
um filme feito e sobre a periferia de São Paulo, o Capão Redondo. É um filme
pobre, que se assume pobre. A pobreza do filme é uma forma ética de dar a ver o
mal-estar sobre o qual o filme se propõe a refletir.
No entanto, estamos distantes da espetacularização da
miséria de um CIDADE DE DEUS. Passa muito longe do otimismo do "Rio Mais
Cenário" de um CINCO VEZES FAVELA AGORA POR NÓS MESMOS. Está longe até
mesmo do drama profundo de MATARAM MEU IRMÃO, montado por Lincoln.
O filme não quer ser um panfleto social, mas apenas busca
expressar sua indignação e o cansaço dos corpos diante do esmagamento das
possibilidades de ser.
O filme, então, não apresenta esse universo, os lugares e os
personagens como geralmente um filme se apresenta a nós. Ele assume em sua
gramática uma profunda desorientação, uma fragmentação aguda que nos incomoda.
Seu incômodo é gerado não apenas por seu discurso agudo (o aborto, a morte, o
trabalho) mas principalmente pela busca de uma gramática justa que possa
expressar esse mal estar.
Planos de câmera na mão combinados com planos de câmera fixa
extremamente alongados; planos de registro documental de inspiração realista
combinados com planos alegóricos de inspiração fantástica (os homens fazendo
aborto); faixa sonora ora sincronizada ora dissociada das imagens; música
combinada com silêncios; etc.; etc.
Em comum, a solidão, o desespero, os corpos massacrados pelo
trabalho, a busca de alguma alternativa diante do destino que parece
inexorável, a juventude que procura falar de alguma forma possível, uma pobreza
e uma honestidade cênica profunda.
Não é possível ler FILME DE ABORTO com uma cartilha
pós-estruturalista que relaciona intenção e resultado. O filme está
completamente imerso em romper essa gramática que permite qualquer comunicação
direta, pois o filme - de novo - não é um panfleto mas a expressão de uma
juventude no Brasil de hoje (um filme urgente).
Em comum, essa solidão profunda e esse desespero. O filme me
lembra dos experimentos das vanguardas dos anos vinte, dos filmes do Manifesto
de Oberhausen, do cinema marginal, especialmente de Bressane, das obras de
Godard/Gorin do Grupo Dziga Vertov, como Um filme como os outros, mas todas
essas referências na verdade tentam abafar meu profundo espanto com esse filme,
que foge às classificações.
Diante da honestidade cênica de FILME DE ABORTO, lembramos
de uma frase antiga que o cinema (digo, a instituição cinema) é uma máquina de
mentiras.
FILME DE ABORTO, como o próprio título diz, nos faz pensar o
que é um filme e o que é um aborto. O filme não fala apenas literalmente sobre
o aborto de fetos, mas de uma geração abortada, pela imposição de um modo de
ser que castra a juventude pelas normas do trabalho. A forma como o capitalismo
implica na restrição dos modos de ser é o grande tema desse filme (o "de
aborto"), e de outro lado, como dar a ver essas questões através da
gramática do cinema, negando o próprio capitalismo das imagens (o
"filme"). Muito coerentemente, Lincoln não apresenta um filme de
tese, mas apenas derrama na tela seu desconforto com o mundo, e uma apreensão
de como a linguagem do cinema pode contribuir para refletir sobre esse
mal-estar.
Isso porque, ao vê-lo mais atentamente, é possível ver um
rigor, um diálogo com Brecht e com Carolina Maria de Jesus. As pontas pretas do
início e do final do filme, e o contraste criado entre elas, nos dá a ver a
radicalidade do discurso do filme. E como Juliano Gomes disse muito bem no
debate em Tiradentes, "é preciso ver Carolina Maria de Jesus não apenas
pelo seu discurso mas principalmente pelo seu estilo". FILME DE ABORTO me
interessa sobretudo pela sobriedade como encena seu desespero. Ou seja, por seu
estilo.
Não me lembro de nenhum outro filme do cinema brasileiro
recente que tenha conseguido uma forma de encenar tão direta, tão profundamente
honesta, que exaspere o seu desespero diante de uma juventude abortada, por
meio de um cinema dilacerado. Ao final, a história de uma mulher grávida que se
suicida (um tipo bizarro de aborto). A bebida. Uma mãe que banha o corpo da
filha. A tela preta. A música de Carolina. Já basta.
Meu espanto é que este que vos escreve, que não mora na
periferia de São Paulo, e que não precisa trabalhar doze horas por dia pela
subsistência, e que nunca abortou, me sinta completamente tocado pelo filme, a
ponto de achar que esses personagens sou eu. Querendo o diretor ou não, mesmo
distante do seu lugar de fala, eu quero me apropriar desse filme, esse filme já
é meu, já faz parte de mim.
Sendo assim, não tenho mais forças (todo texto é um caminho
sem volta) para prosseguir. Paro por aqui.
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