Num momento em que não são raros aqueles que categoricamente
decretam o anacronismo do "cinema de rarefação", CÃES ERRANTES, de
Tsai Ming-Liang, vem comprovar a coerência do seu processo cinematográfico tão
singular. Acredito que esse filme e seu próximo - XI YOU (JORNADA AO ORIENTE) -
devem ser vistos conjuntamente. Nem tanto pela presença marcante de Lee
Kang-sheng, tradicional colaborador de Tsai, mas por como os dois filmes
oferecem possibilidades para o tão falado "cinema de rarefação". Como
um primeiro passo para aproximar os filmes, talvez nos seja útil uma frase de
Tsai no release de CÃES ERRANTES ("estou cansado do cinema"). Ora, de
que cinema Tsai está falando? Me parece que seu desabafo incide sobre as
chamadas convenções do cinema contemporâneo, e que ele busca aprofundar o seu
processo artístico caminhando, ainda que
(ou melhor dizendo, especialmente)
lentamente. Os dois filmes são políticos porque falam diretamente sobre formas
de viver e ocupar as cidades, ou ainda, são sobre como as arquiteturas
(des)humanas da cidade colidem com uma forma de ser. Mas se essas pessoas
constrastam com o frenesi da cidade, elas buscam uma forma de resistir que não
entra em confrontamento com a lógica do poder, mas uma forma de equilíbrio
possível diante de si mesmas.
Para isso, é preciso ir ao mundo, é preciso se posicionar
diante dele. Mas num mundo dominado pelos extremismos, pelos ataques
terroristas, e pela violência como resposta à violência, pela agressão como
forma de comportamento, Tsai reage de forma zen. Para isso, é preciso não
apenas ir ao mundo, mas saber observar, saber se colocar diante dele. XI YOU é
um filme sobre a possibilidade de um corpo ocupar um lugar no espaço e se mover, essa expressão que adquire um
sentido ontológico num mundo em que os deslocamentos passam a ser tão
corriqueiros quanto a velocidade dos fluxos financeiros e do tráfego dos terabytes
das fibras óticas da internet. E para que possamos nos mover, é preciso tempo.
CÃES ERRANTES poderia ser um filme político convencional por
como o realizador aborda com delicadeza e sensibilidade a condição desses
párias que definham em um subemprego, ocupando moradias clandestinas, lutando
pela sobrevivência e pela comida da próxima refeição, quase como animais, cães
que sequer ladram. Mas sua força não vem apenas daí, mas da forma como o
realizador encena seu olhar sobre o mundo, ou ainda, de como ele se posiciona diante do que se passa. Ou seja, a ética do cinema de
Tsai - ou ainda, seu cansaço diante do cinema - está em como suas obras abordam
o espaço e o tempo. São trabalhos de arquitetura sobre a arquitetura.
Mas assim também o era em um filme como GOODBYE DRAGON INN,
um cinema de contemplação, sobre o espaço e o tempo de um locus que caminha
para a desintegração e o abandono. Mas agora a ênfase não é nos jogos de
representação, não há espelhos, tudo é mais direto. Há uma depuração da rarefação, uma condensação de energia combinada à
brutalidade de uma atmosfera que explode em situações. Ou, de outra forma, um
drama humano. Os cães de Tsai não compõem meros jogos formais, eles são
violentos mas precisam de afeto. CÃES ERRANTES é um filme sobre a necessidade
da solidão e a impossibilidade de vivermos sós. Ou se quisermos usar mais uma
palavrinha que querem converter em clichê - em .... AFETO.
Colocando de outra forma: é preciso tempo, pois o tempo faz decantar para dentro dos personagens sua condição. Mas só temos acesso às
suas reações físicas, ou ainda, como eles reagem para fora, em como eles ocupam um espaço e se movem.
É possível afirmar que a obra de Tsai vem se aproximando das
artes visuais, mas esse não é o ponto. Tsai reflete sobre o estado do mundo
hoje articulando seu projeto com um exame profundo sobre as possibilidades da
mise-en-scene na dramaturgia contemporânea. O espaço como dramaturgia, a
importância das pequenas ações, o hibridismo do documentário, a presença dos
corpos no espaço... todas essas investigações são agora combinadas com um
cinema profundamente humano, que não meramente vitimiza ou exotiza seus personagens.
O espaço e o tempo permanecem as ferramentas essenciais do cineasta, desde que
não virem fetiches para meros jogos formais. Mas para isso, é preciso ,acima de
tudo, se posicionar, ou seja, é
preciso sempre um corpo no espaço. Um corpo
cuja presença/ausência o leva a se mover.
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