PINGO D´ÁGUA e seus entrelugares
Pingo d´água é um filme de
trânsitos e de deslocamentos. Devo começar com a própria posição do seu
realizador. Taciano Valério vive entre Campina Grande e Caruaru. É um cineasta
nordestino mas seu cinema não reflete os valores geralmente associados a uma
produção regionalista: seus filmes não abordam a cultura popular, o sertão, a
seca, o cangaço, etc. Ainda, Taciano vive "no interior do interior":
não está nem em João Pessoa nem em Recife mas nos interiores desses dois estados.
Ao mesmo tempo, Campina e Caruaru são "duas cidades grandes": são
dois "centros no interior", que refletem o crescimento de cidades
médias no interior do Nordeste. São centros urbanos que, em maior ou menor
grau, também sofrem de problemas análogos aos das grandes metrópoles. É o que
vemos, por exemplo, em Ferrolho, longa anterior de Taciano, passado em Caruaru.
Deslocado entre essas duas
cidades interioranas mas que ao mesmo tempo não mais refletem os valores que se
esperam desse interior (ou ainda, que não mais repetem as antinomias entre
interior versus centro, ou rural versus urbano), o maior desafio do cinema de
Taciano Valério é incorporar essa ideia de trânsito à própria ideia de uma
dramaturgia. Deslocados de si, seus personagens buscam um lugar no mundo, e
vivem sempre numa ideia de trânsito.
Sim, porque o cinema de Taciano
é, acima de tudo, um cinema de personagens. Mas é curioso pensar nesse
realizador que tem um mestrado em literatura, um doutorado em psicologia
clínica e que busca se expressar através do cinema - talvez mais um desses
deslocamentos de que falava. É curioso, pois seu cinema de personagens busca um
outro respiro de dramaturgia de personagens, que não se baseia nem numa ideia
de roteiro como espinha dorsal do processo fílmico nem no intimismo psicológico
como chave de identificação dos personagens. Então, o que temos? Uma ideia de
trânsito, uma necessidade de se deslocar, uma dificuldade de encontrar um pouso
seguro. Um desejo enorme de encontrar um lar, e ao mesmo tempo sua
impossibilidade, porque tudo é tão fugidio e solitário.
Me interessa pensar nessa ideia
de trânsito como chave do cinema de Taciano. Um cinema existencial entre
Campina e Caruaru, entre interiores que não mais são. Se falamos no cinema
contemporâneo como um cinema transnacional, como efeito de uma globalização, é
possível pensar o atual cinema brasileiro através de um cinema transregional. A
internet, as redes, as promoções de passagens aéreas, a escalada do número de
carros têm possibilitado o aumento dos fluxos entre cidades, e esses
deslocamentos têm afetado não apenas a diversidade dos temas mas também os
modos de fazer. Pingo d´água foi realizado entre Tiradentes (MG), Campina
Grande (PB), Lagoa Seca (PB) e São Paulo (SP). Não é mais possível dizer que
Pingo d´água é um filme paraibano. É um filme de entrelugares. Ao mesmo tempo,
na ficha de inscrição do Festival de Brasília, era preciso marcar um
"X", definir um "local de produção". Se Taciano não
marcasse "(X) PB", seu filme provavelmente não teria sido exibido.
Qual é o sentido de se falar de onde se é, ao invés de para onde se busca ir?
Mas talvez eu tenha sido
apressado e seja melhor recomeçar de outra forma.
Pingo d´água começou de um
encontro. Taciano estava na Mostra de Tiradentes exibindo seus dois longas
anteriores, e viu ali uma oportunidade de rodar uma cena com alguns atores que
lá já estavam. Abordou-os e os convidou para a cena de um filme, que ele tinha
apenas um esboço: atores que entram em conflito quando descobrem que apenas um
deles recebe cachê e esperam a chegada do produtor para lhes dar explicações.
Esse foi quase um pretexto para que os atores se reunissem, e, a partir da
energia produzida por esse encontro de corpos e vozes, houvesse a possibilidade
de surgir algo. Essa cena, e esse encontro, foram gerando outras cenas e outros
encontros, que se multiplicaram.
A dificuldade é que, a partir
desse encontro, cada um dos atores retornou para sua cidade. Foi formada então
uma rede, cujas teias foram sendo cozidas a partir desse primeiro encontro.
Walter, Jean-Claude e Melissa em São Paulo; Dellani em Belo Horizonte; Veronica
e Paulo em Caruaru. Como agenciar esses encontros?
Pingo d´água, então, para poder
prosseguir, assumiu-se como um filme em trânsito. Tornou-se um filme sobre a possibilidade
de esse filme ser feito. Tornou-se um filme sobre atores em busca de seus
personagens. Tornou-se um filme que desdobra uma dramaturgia de personagens
através de três camadas: a pessoa, o ator, o personagem. De um lado, em várias
ocasiões o filme mostra atores se preparando para um ensaio (Walter decorando
as falas de um texto, atores em um breve ensaio corporal, Melissa dizendo que
vai viajar para um filme, os atores discutindo o cachê, etc.). De outro,
situações vividas por essas pessoas foram usadas como base para construir
personagens (Jean-Claude que não quer mais ser crítico, que tem dificuldade
para ler, Walter que se cansa de ler para Jean-Claude, etc.).
Ao mesmo tempo, essa dramaturgia
de personagens se desfolha em encontros. Ora os personagens estão em grupo (o
encontro em Tiradentes, as performances em Brejo Seco), ora estão em duplas
(Melissa e Verônica, Jean-Claude e Everaldo, Jean-Claude e Walter, etc.) ora
estão sós.
Na montagem as situações se
embaralham, frustrando quem busca uma evolução narrativa gradual que possa
amarrar as situações montadas para o filme. Não é que o filme seja "sem
sentido", mas se parece que a montagem busca encontrar um sentido para as
cenas, imbuída pela ideia de trânsito, ela acaba extrapolando as relações, como
se ela mesma espelhasse essa dificuldade de os atores encontrarem seus
personagens, como se refletisse esse percurso, desse filme em eterna busca de
si. Como um filme que também procura um pouso e, desconfiado dele, rodopia em
torno de si, e se surpreende com a beleza desse giro, e absorto por ela,
desiste de pousar. O delicado Pingo d´água é por vezes inquieto e desconfiado,
matuto e matreiro. Desiste do pouso e prefere continuar rodopiando, em busca de
si.
Para poder ver Pingo d´água, o
espectador precisa se deslocar de seu porto seguro e embarcar nessa viagem sem
rota. Deve desistir de tentar encontrar uma espinha dorsal e simplesmente se
deixar surpreender (maravilhar) por pequenos lampejos de beleza que
inesperadamente surgem e logo desaparecem. Ele precisa ver os planos, ver os
movimentos dos corpos, precisa olhar para a pele, precisa buscar o que não
consegue ser dito, precisa mergulhar nos matizes de cinza. Ele só irá se
encontrar se permitir se deixar perder.
Esses surtos de beleza são breves,
são apenas lampejos, porque há algo que falta. É curioso pensar que se Pingo
d´água é um filme de encontros (o encontro é a única possibilidade que se tem),
me parece que é na mesma medida um filme de desencontros. Há algo que falta. Há
uma solidão, uma separação, uma angústia. Não há fetiche, não há mero
espetáculo narcisista de autocontemplação. É um mergulho existencial, de uma
narrativa que se dobra diante de si. Um realizador, alguns personagens, uma
dramaturgia íntima que, em meio a um processo sinuoso, se curvam para o
interior de si mesmos. Um filme de trânsitos e de deslocamentos.
Todos esses aspectos podem ser
pensados na figura de Jean-Claude Bernardet. Diante de um dos maiores
pesquisadores da história do cinema brasileiro, o que nos surpreende é a sua
vitalidade e inquietude. Ao invés do pedestal "de grande pensador da USP",
Jean-Claude prefere se colocar numa posição de extrema fragilidade, buscando
aprender mais que ensinar (essa é sua maior lição!). Ou ainda, prefere se
colocar nesse constante deslocamento de si mesmo, nesse estado de trânsito,
nessa inquietude, em rasgar as zonas de conforto, em teimar em ser jovem mesmo
quando não se é mais, etc, etc. A forma surpreendente como Jean-Claude se lança
nesse abismo é enormemente inspiradora, pois fala de forma frontal de todos os
desafios de uma nova geração do cinema brasileiro: a possibilidade de se
reinventar a cada momento, buscando o cinema como vocação e não como estratégia
de poder ou de dinheiro.
Jean-Claude vive essas situações
não de forma teórica ou idealizada, mas ele respira todas essas dificuldades
expondo para o público as suas cicatrizes em seu próprio corpo. Ele expõe suas
fragilidades sem nenhum pudor prévio pela sua "imagem", o que só nos
mostra que o pensamento de Jan-Claude não foi visto apenas nos seus textos mas foi
vivido em sua própria vida, no seu próprio corpo. Estamos falando dessas opções
éticas que são vividas concretamente, a cada dia. É por isso que sempre digo
que o "cinema de garagem" não é feito apenas de questões
"econômicas" (pouca grana) ou "estéticas" (a beleza do
plano). Jean-Claude VIVE as suas opções de liberdade e de constante
questionamento e reinvenção e é isso o que nos alimenta.
Pingo d´água é um filme coletivo
pois se estrutura no processo contínuo de colaboração, e não como estratégia de
consolidação de uma marca, recurso da publicidade. É um coletivo que se
organiza provisoriamente, temporário. Ao final do filme, cada um volta para
suas casas, e potencializa esses encontros nos seus próximos encontros, nos
seus próximos coletivos e projetos, que serão desenvolvidos com outras pessoas.
Esse já é outro assunto.
Pingo d´água é sem dúvida o mais
radical dos filmes exibidos no último Festival de Brasília. Foi ali exibido por
uma combinação de acaso, destino e milagre, o que rima com o próprio filme. A
maior parte da crítica ficou estupefata. No extraordinário debate no dia
seguinte após a exibição do filme no Festival de Brasília, Taciano disse que há
duas possibilidades para o cinema: o "cinema raiz" e o "cinema
rizomático". A grosso modo, o cinema raiz é aquele que se estrutura a
partir de um espesso tronco (monolítico), e o cinema rizomático, dialogando com
o conceito de Deleuze, é uma "ruma de batatinhas", algo que não se
organiza a partir de um tronco denso, mas que se esparrama pelo solo. Fico na
dúvida se essas dualidades nos ajudam a pensar o cinema que Taciano propõe mas
sua argumentação foi deliciosa.
Pingo d´água está longe de ser
uma obra-prima, nem se pretende a ser. Esses instantes não raras vezes brotam
de maneira irregular, alguns momentos de incrível beleza nos surpreendem
enquanto outros apresentam mais dificuldade de aprofundamento. Mas analisar
desse modo é não perceber o que está em jogo no filme. Seu gesto ousado e
desafiador está em se lançar nesse tabuleiro de cartas a partir de um olhar
para o processo de realização da obra que propõe um enorme e instigante debate
sobre as possibilidades de se fazer um filme. Essa é a posição desse filme
dentro do atual cenário do cinema brasileiro.
Ali nesta edição do Festival de
Brasília, no meio de outros filmes potentes, dado todo um contexto, este filme
pôde ser visto. Mas permanece na sua solidão, pois aponta para caminhos muito
diferentes de todos os outros. A "rama de batatinha". Por trás do
delicadíssimo Pingo d´água, há a figura de Taciano, que permanece entre Campina
Grande e Caruaru, esse cabra matreiro que permanece nesses entrelugares,
buscando uma espécie de lar, uma sombra do cajueiro.
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Hipolito Lucena