TIRADENTES 2014: TRÊS CURTAS NOTÁVEIS
Em parceria com o site CURTAOCURTA, publico minha análise sobre a seleção de curtas-metragens exibidos na 17a. Mostra de Cinema de Tiradentes).
Vejam a matéria completa em http://curtaocurta.com.br/noticias/mostra_de_tiradentes-3219.html
Vejam a matéria completa em http://curtaocurta.com.br/noticias/mostra_de_tiradentes-3219.html
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MOSTRA DE TIRADENTES: CURTAS-METRAGENS
A cada ano que passa a Mostra de Tiradentes vem se
consolidando como o mais importante ponto de encontro de exibição e reflexão
sobre os novos rumos do jovem cinema contemporâneo brasileiro. Além dos sete
longas-metragens que concorrem na Mostra Aurora, dedicada a relizadores em seu
primeiro ou segundo longa-metragem, uma série de debates e seminários marca o
espírito de reflexão e discussão em que se baseia a Mostra de Tiradentes. Além
disso, há a exibição de curtas-metragens, divididos especialmente em duas
sessões: Mostra Panorama e Mostra Foco. Exibir curtas-metragens me parece uma
parte essencial da mostra, no seu objetivo de difundir novos rumos estéticos
para o cinema brasileiro, e em sua procura de novos talentos promissores da
cena local. O curta-metragem, ainda mais hoje, facilitado pelo barateamento dos
novos modos de produção, se revela campo privilegiado de experimentação de
outros caminhos para a linguagem audiovisual, dado o seu evidente
descompromisso com a necessidade industrial de auferir lucros e atrair uma
audiência de milhões.
A Mostra Aurora vem se consolidando como um campo
privilegiado para a busca dos novos talentos do cinema brasileiro, através de
uma curadoria atenta, que busca fazer relações entre os filmes selecionados,
relações que se complementam, visto que os filmes apontam para olhares
distintos, formando um panorama amplo de possibilidades para o jovem cinema
brasileiro. Cada vez mais percebo que uma boa curadoria não é aquela que
simplesmente escolhe os "melhores filmes" segundo o mero gosto do
curador, mas aquela que propõe questões, que provoca o gosto do público,
estabelecendo relações e conexões entre os filmes selecionados, propiciando um
debate sobre possibilidades e escolhas.
Se a Mostra Aurora comprova seu amadurecimento de curadoria
a cada edição, confesso que me vejo desapontado com a curadoria dos
curtas-metragens da Mostra, especialmente com a seleção da Mostra Foco. Com
isso, está longe do meu propósito criticar ou atacar pessoalmente a figura dos
curadores, que são pessoas competentes. Mas quero simplesmente provocar um
debate sobre a dificuldade de a curadoria de curtas-metragens estar alinhada
com a proposta da de longas-metragens. Esse abismo, essa falta de sensibilidade
da curadoria de curtas, desloca o curta-metragem dessa discussão mais geral dos
rumos do cinema brasileiro, reduzindo a potência do debate e as possibilidades
subversivas desse formato. Diria que falta foco aos curtas da Mostra Foco. Um
dos curtas, sobre uma menininha com Síndrome de Down que quer ir à praia com a
irmã, me lembrou de uma novela do Manoel Carlos, em que ele escalou uma
deficiente para mostrar à população que ela era "uma pessoa normal",
e todos os planos meramente ilustravam essa premissa: a da
"normalidade" e a da integração. Premissa digna, humana, apropriada,
mas cujo desenvolvimento dramatúrgico e estético me parece dizer quase contra
as suas iniciais intenções. Ou seja, o oposto de Me and My Brother, de Robert
Frank, e vários outros.
Assim sendo, desisto de minha intenção inicial de analisar
cada um dos curtas da Mostra Foco, porque seria uma perda de tempo e de
energia, e resolvi neste texto, analisar um ou outro curta, que se destacaram,
ao meu ver, entre as sessões de curtas que me foi possível ver. Assim, essa
relação de forma alguma coroa "os melhores curtas" do festival, mas
simplesmente são exemplos de vitalidade dentro do formato, exemplos que, por um
motivo ou outro, me chamaram a atenção.
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Em VAILAMIDEUS, uma realizadora (Ticiana Augusto Lima) filma
a festa de aniversário da avó, quase nonagenária. Estamos então no registro de
uma intimidade de uma família, numa certa vertente de um cinema contemporâneo.
Poderíamos pensar em Naomi Kawase filmando a avó? Muito longe disso. Qual é a
forma que a relizadora encontrou para encenar isso? Através de dois únicos
planos de câmera fixa, de longa duração. Qual é a questão? Nessa festa, que
conta com a presença de toda a família, percebemos uma certa distância afetiva
da realizadora em relação a esse contexto. Uma festa brega, como toda festa de
família, agravada pelo fato de ser em Fortaleza. Assim, VAILAMIDEUS aproxima-se
de DIZEM QUE OS CÃES VEEM COISAS, de Guto Parente. Mas há uma diferença em
relação a este curta: é sua avó, é sua família, por quem a realizadora possui
um evidente laço de afetividade. Como então fazer essa crítica desse modo de
vida brega burguês mas sem julgar de forma caricata, até porque se pertence a
ele? Como se equilibrar dentro dessa contradição: entre a afetividade e a
crítica, entre o distanciamento e a proximidade, entre o filme familiar e o
ensaio crítico? Tici escolheu então um momento-chave da festa: quando membros
da família tiram um retrato junto com a avó. Esta, numa cadeira de rodas, muito
idosa, mal consegue reagir: é uma meia-morta, quase um zumbi. Ou ainda, não
conseguimos precisar muito bem como é a reação dessa avó à festa, se ela gosta
ou reprova o que fazem dela. Essa indefinição entre a aceitação e a recusa
dessa avó a esse espetáculo familiar que ela faz parte independentemente de sua
opinião possui um nítido paralelo com a posição da própria realizadora diante
de tudo isso. Mas como Tici encena isso? Através de dois planos fixos
longuíssimos. O primeiro, um plano geral da família posando para a foto. Um
plano geral frontal, aos moldes de um retrato, o que nos remete à tradição dos
primórdios do cinema de cavação e do cinema como registro familiar. A
realizadora posiciona sua câmera de filmar assim como aquela outra câmera que
tira as fotos. No entanto, nos parece claro que existe um distanciamento
crítico entre esses dois gestos, entre essas duas câmeras. Esse distanciamento
é perceptível através da duração, do tempo: é nítido o tom farsesco da
situação, um certo constrangimento para efetuar as poses, o certo caráter
aleatório entre um ou outro grupo que se aproxima para sair nas fotos, e o
tempo nos deixa cada vez mais desconfortável em relação à presença da avó e sua
condição física que entra em contraste com a (falsa) alegria das fotos
instantâneas. Ou seja, é a partir da comtemplação, a partir do exame do tempo e
da sua duração que esse mesmo gesto de fotografar/filmar acaba assumindo uma
outra dimensão, uma dimensão crítica desse próprio gesto. Fica claro então que
a realizadora nos propõe não apenas um regime caseiro, familiar, mas que aponta
para uma outra questão: a da vida em família, ou ainda, inesperadamente para
relações de cultura da própria cidade de Fortaleza. Com isso, quero sugerir que
inesperadamente VAILAMIDEUS é um filme sobre a classe média alta de Fortaleza,
muito mais potente que DIZEM QUE OS CÃES VEEM COISAS pois não quer meramente
julgar personagens estereotipados mas propor uma reflexão profunda em que a
própria realizadora se vê parte dessa classe, e, por isso, numa espécie de
autocrítica, é mais cuidadosa para não julgar de antemão aqueles que ela filma.
Mas é quando vem o segundo plano, que encerra o filme. É um
plano fechado, um close, da avó. Não conseguimos ler sua reação. Seu rosto é
uma paisagem, mas ele esconde muito mais que revela. Ficamos ali, a meio palmo
desse rosto, mas permanece o mistério. Não conseguimos ver. Há algo ali que
permanece inacessível. Há um pequeno gesto, que parece ser o de uma
concordância, o de um parabéns. Ao mesmo tempo, toda festa é encenada, todo
parabéns de uma festa é necessariamente encenado. O que há de espontâneo ali
naquele documentário de observação, que mostra pessoas posando para uma foto? O
que há para se comemorar ali? O fato de se estar vivo. O fato de permanecermos.
Se é bom ou ruim, se vale ou não a pena, se há afeto ou não, se é premeditado
ou espontâneo, permanece um mistério. VAILAMIDEUS reavalia a tradição de filmes
familiares, inserindo uma carga política à sua investigação da intimidade.
Nesse abismo intransponível entre a crítica e o afeto, entre a representação e
a vida, encena, em dois únicos planos, uma reflexão profunda sobre as
dificuldades de viver e filmar com justeza.
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Já em (E), de Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti e
Miguel Antunes, não há família, não há afeto, há apenas a cidade. Ou ainda, o
capital, quase onisciente, a observar tudo. (E) propõe uma reflexão crítica
sobre os rumos das grandes cidades, começando a observar a quantidade de carros
nas cidades. O estímulo à indústria automobilística como símbolo da ascensão
social da dita classe C é visto em suas contraindicações no modo de vida das
cidades. Mas aqui o pulo do gato de (E) é como os realizadores fazem uma
articulação entre o aumento do número de carros e a especulação imobiliária no
centro de São Paulo. Com o aumento do número de carros, é preciso criar
estacionamentos para esses carros. Esses estacionamentos são cemitérios temporários
de antigas casas e residências, que são demolidas, para dar lugar a
estacionamentos, que em pouco tempo, serão transformados em grandes prédios. Os
estacionamentos passam, numa lógica de circulação do capital financeiro, a
funcionar como investimentos em terrenos, que, por terem maior liquidez, podem
se transformar rapidamente num investimento mais lucrativo.
(E) é portanto uma espécie de filme-ensaio que nos dá a ver
os meandros dessa lógica de modernização dos espaços urbanos, em que a
padronização e a mecanização substituem uma outra experiência de viver na
cidade. Mas como os realizadores encenam essa questão política? (E) nos
surpreende pela forma irreverente e ousada de por em cena essas questões. O
filme não apensas nos informa sobre essa situação, como um panfleto
jornalístico, mas incrementa seu impacto através de estratégias discursivas,
que, com o uso da ironia, abalam a percepção do espectador, numa torção entre o
humor, o desconforto e a indignação. Com isso, (E) se aproxima de um filme como
EM TRÂNSITO, de Marcelo Pedroso, mas com nítidas diferenças. Ambos os filmes
analisam o impacto do estímulo à indústria automobilística como ponto de
partida para uma questão maior que desvela a desumanização por trás da
estratégia de ocupação das grandes cidades. Mas Pedroso utiliza um morador de
rua (sua casa é demolida), e aponta para o sistema político que dá sustentação
à ilusão do desenvolvimento (como se questionasse: "desenvolvimento para
quem?"). Já em (E) não vemos pessoas em todo o filme. Apenas carros,
prédios, blocos de concreto. É como se as pessoas tivessem sumido,
desaparecido, soterradas pelo aço e concreto. O filme começa com planos de
diversos estacionamentos, alguns vazios, outros cheios de carros. O ápice dessa
tendência - que combina humor e indignação - é quando o filme mostra um
"elevador de carros", que permite que o morador chegue até o seu
apartamento sem sair de seu carro. A encenação desse momento é formidável, pois
mostra apenas o carro entrando e saindo da casa. Essas estratégias, mais do que
recurso formal, apontam para o espírito do filme: o impacto de um processo de
modernização que, em última instância, estimula a substituição do homem em
máquina, ou ainda, a coisificação do mundo contemporâneo, regido pelo carro e a
casa como valores de uma identidade. Os protagonistas de (E) não têm rosto, não têm nome, não possuem identidade. De
forma análoga, os responsáveis pelo estado de coisas não têm rosto, são
inomináveis. Ao invés dos políticos, aponta-se para algo mais intangível, o
mercado, ou, se preferirem, o capital. A velocidade de transformações desse
estado de coisas é cada vez mais intensa e irreversível. O filme possui uma
genial estratégia de mostrar o "google street view". Ao mesmo tempo
em que funciona como ferramenta de prospecção de "futuros
investimentos" (lugares abandonados que podem virar estacionamentos - ou
prédios), é possível constatar uma discrepância entre as imagens vistas pela
ferramenta com o que já vemos hoje - apontando para a velocidade dos efeitos
dessa transformação da paisagem urbana em função da especulação imobiliária. A
forma irreverente e complexa que o trio de realizadores concebeu e realizou
esse curta atualiza a tradição de um cinema de militância política que não seja
sinônimo de um mero panfleto jornalístico, mas potencializando suas questões
através de uma lida criativa e rica com os elementos da linguagem
cinematográfica.
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Se estamos falando da relação entre distanciamento e
afetividade, e de um olhar crítico para a ocupação dos centros urbanos, um
curta transversal a essas questões é o simples e belo MIE NISHI, de Bruno
Caticha. Em estilo observacional, o realizador acompanha o cotidiano de uma
colônia japonesa em São Paulo. Praticam esportes a céu aberto: baseball,
gateball, sumô. Cantam karaokê. Chove. Não há diálogos, personagens. Há o
tempo, o movimento, a natureza. O realizador observa de longe. Mas no fundo
observa de perto, é atento, generoso. Não é um filme frio ou formalista. É
simples e humano. Que maravilha esse cinema que observa o movimento do mundo,
com uma distância precisa, entre o distanciamento e o afeto, com um
enquadramento rigoroso, fixo, mas extremamente atento aos pequenos movimentos
do mundo. As lições do cinema dos Irmãos Lumière no cinema de hoje. O incrível
em MIE NISHI é a maneira precisa com que o realizador e sua equipe observam
esse dia de domingo dessa colônia japonesa. Não há especificamente uma atenção
à personalidade: quase como um pintor impressionista, Bruno observa uma
paisagem, uma natureza, mas certamente ocupada por pessoas, por gestos, por
movimentos. Mas é um filme muito mais composto por planos gerais do que por
closes. Assim, Bruno aponta para uma possibilidade de ocupação dos centros
urbanos (em São Paulo) em contraposição à velocidade frenética e desenfreada.
Seu cinema busca um modo de vida comum em que a contemplação dos pequenos
gestos ainda possa ser possível.
Alguns podem pensar que se trata de um filme que enquadra
pessoas em tableau, fixos numa estética materialista, em que o quadro importa
mais do que a vida. Mas é exatamente o contrário! O que me fascina em MIE NISHI
- talvez influenciado pela longeva tradição da própria cultura japonesa e de
sua forma de estar no mundo - é justamente sua curiosidade pelo mundo, os
valores humanos para que o filme aponta. Uma forma de estar no mundo. Em como o
filme combina imenso rigor com uma estrutura tão leve, uma forma leve de ser.
Prova disso são as extraordinárias panorâmicas - poucas - que compõem o filme,
e que apontam para um extracampo. Ou seja, que mostram que o diretor é curioso
e que vislumbra outras possibilidades de enquadrar, que existem outros
enquadramentos, outras pessoas e outros mundos que habitam ali. Que há muitos
filmes e vidas possíveis.
Saber observar o movimento do mundo. Não é muito diferente
do que propôs fazer os Irmãos Lumière tantos anos atrás. Bruno Caticha recupera
essa tradição, alinhado a um bom cinema contemporâneo, como o de Chantal
Akerman, James Benning, Sharon Lockhart e alguns outros, inserindo, claro, o
seu olhar pessoal, dando um toque de inesperada afetividade numa São Paulo
poluída, caótica e nublada.
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