Linz, o Umberto D do novo cinema cearense
Para quem acompanha a cena
cinematográfica cearense, não dá pra falar sobre Linz apenas pelo que vemos na
tela. Como disse Paulo Emílio, o cinema brasileiro não se resume aos filmes,
mas se expande para o seu entorno. É para esse papel que me interessa aqui
apontar neste texto.
É verdade que tudo começou bem
antes, mas não é um exagero dizer que tudo começou em Vilas Volantes. A força
do doctv de Alexandre Veras abriu uma porta para a nova cena cearense. O que
essa geração fez foi simplesmente adentrar por essa porta, ainda que cada um
tenha seguido o seu próprio caminho – como é natural. Mas Vilas mostrou que era
possível, a partir de um outro modo de produção, guiado pela afetividade e
pelos bons encontros, mergulhar no cinema contemporâneo. Já falei o suficiente
da importância de Vilas Volantes para o projeto cearense aqui (http://bit.ly/WDsE5L).
O Alumbramento extrapolou essa
influência, a partir de um coletivo que rompia barreiras entre o cinema e as
artes visuais, agregando um conjunto de artistas de Fortaleza de influências
múltiplas. Com o tempo, o Alumbramento foi considerado como uma referência no
cinema contemporâneo brasileiro. Foram realizados diversos curtas em vídeo dos
estilos mais diversos, com realizadores das mais variadas formações. O ápice
dessa experiência foi o longa Praia do Futuro. O caldo foi adensando. Mas
talvez poucos saibam que o que eles fizeram foram adentrar aquele pórtico
aberto não só pelo filme mas pela posição pessoal – ética e política – de
Alexandre Veras.
Mas especialmente após a
repercussão de Estrada Para Ythaca, o Alumbramento formou um núcleo duro. Sob a
liderança de Ivo Lopes e a intermediação dos Irmãos Pretti e de Guto Parente e
Pedro Diógenes, formados pela Vila das Artes, tenho a impressão de que o
Alumbramento institucionalizou-se. Deixou um pouco o seu lugar de proposição de
um cinema radicalmente independente, e se acomodou com a inserção num certo
circuito dos festivais nacionais e especialmente internacionais. Entendo todas
as dificuldades do Alumbramento em se inserir se forma mais ampla numa cena do
cinema brasileiro, mas ao mesmo tempo sinto falta, com uma certa nostalgia,
daquele espírito inquieto e irreverente que alimentava os primeiros filmes
descompromissados do Alumbramento, e que me fizeram vir para o Ceará. Sinto
falta de um diálogo maior do Alumbramento com a produção recente do estado.
Sinto falta que o Alumbramento abra mais janelas para os que vêm por aí. Sinto
uma produção mais engessada, menos curiosa, que apreende menos o processo e a
dúvida como agente transformador do resultado final do filme.
Dessa forma, se Vilas Volantes é
o Roma, Cidade Aberta do novo cinema cearense, Linz é o seu Umberto D. É um
filme sobre o fim. É um triste e doloroso cântico de adeus. O canto do cisne da
nova cena cearense.
* * *
Linz é passado na mesma região em
que Vilas Volantes foi realizado: em Tatajuba, região praieira cearense, bem
próximo à badalada Jericoacoara. A equipe de Vilas, meticulosamente
selecionada, reúne os principais expoentes da nova geração cearense, e resume a
própria trajetória de Alexandre: os amigos mais antigos, deslocados da atual
cena (Bizerril e Armando), os pilares da nova cena (Ivo e Danilo), a geração do
Alpendre (Victor, Marquinhos, outros) e a geração da Vila das Artes.
Em Linz, Alexandre Veras afirma
seu projeto estético, em muitas medidas distante do projeto político do
Alumbramento, conforme explicitado nos curtas Longa vida ao cinema cearense, A
amiga americana e no longa Os monstros. Esses três filmes falam sobre o papel
da amizade como proposta política (quero desenvolver esse assunto em outro
texto). São curtas urbanos, que dialogam com o cinema contemporâneo, permeado
de personagens jovens, vários deles, artistas. Já o longa de Alexandre Veras
tende a um leve anacronismo.
Influenciado pelo romantismo
alemão, Linz é mais próximo do cinema moderno do que do cinema contemporâneo.
Se de um lado é possível compará-lo com experiências como os filmes de Bela
Tarr ou de Sokurov (um certo cinema da Europa Oriental), por outro é clara a
influência de um cinema moderno, por exemplo, O Passageiro, de Antonioni.
A meu ver, o grande ponto que
afasta Linz do cinema contemporâneo é o papel do espaço e as relações entre
ficção e documentário. Embora o filme aparentemente defenda o acaso e o
acidente como motores de uma narrativa – como já se expressa no subtítulo
“quando os acidentes acontecem”, é como se no filme houvesse muito pouco de
acidental e muito de marcação. É curioso pensar na experiência prévia de Veras
nesse espaço com o documentário Vilas Volantes, pois vejo muito pouco como a
singularidade daquele espaço interfere na ação. Ainda que o espaço esteja muito
presente na dramaturgia do filme (a areia, o vento), parece ser “a areia”, “o
vento”, e não aqueles. Ou ainda, o espaço respira muito mais como superfície do
que como história, muito mais como geografia física do que como geografia
humana.
Talvez isso reflita o percurso de
Alexandre Veras pela videoarte e pela videodança, sua trajetória mais próxima
às artes visuais do que o cinema. Linz trata muito mais de um drama universal
(um personagem em ruínas deparando-se com seu destino trágico, o destino
trágico da humanidade) do que propriamente transborda um olhar singular para
Tatajuba e seus dramas humanos. Me parece que Linz está mais interessado em
compor relações formais com o plano, com o espaço, com os elementos da
linguagem audiovisual, com a pele de seu personagem do que propriamente em
mergulhar na condição trágica de seu personagem, em descobrir esse espaço, em
se aventurar na dúvida. Quando Linz volta seus olhos para a comunidade local
(um bar, uma festa de quebra-potes), ele o faz com timidez. Para um filme que
se propõe ser todo composto a partir do processo, me parece que Linz tem poucas
dúvidas, é seguro demais de suas convicções. E que convicções são essas? Em
última instância, são sobre a necessidade de colocar-se com dignidade, com
beleza, diante do inevitável fim.
Se Vilas Volantes era um filme
que buscava os rastros da memória numa comunidade soterrada pela areia (a
memória como resistência, a necessidade de permanecer), é como se Linz fosse um
filme sombrio sobre um homem que vai desaparecendo. O personagem é opaco, não
sabemos bem suas intenções, de onde vem ou para onde vai. O que temos é o fim.
Linz toma consciência de seu destino trágico, e vai desaparecendo. A areia (a
natureza) o vai engolindo. Linz não consegue dialogar, não consegue se inserir
no mundo. Sua passagem por aquela comunidade estrangeira não o transforma, e tampouco
transforma as pessoas de lá. Só a natureza permanece. Acontece que essa
passagem de Linz também não transforma o espectador, que permanece por vezes
extasiado pelas superfícies da imagem, mas não o toca, talvez como o próprio
personagem. Isso me faz concluir que Linz é um filme sobre o fim. Linz é o
Umberto D do novo cinema cearense, pela afirmação convicta (suicida,
desesperada) de seu total isolamento. Com isso, inesperadamente Linz dialoga
muito mais com os filmes de Petrus Cariry (especialmente Mãe e Filha) do que
com os recentes filmes do Alumbramento.
Por outro lado, inesperadamente
Linz morre afogado no mar, e não sufocado na areia. Uma divergência ao
fatalismo de Sjostrom ou Teshigahara. Nesse plano final (extraordinário) há
toda uma camada de sentidos que aqui não terei fôlego para aprofundar. O
personagem se vai, resta a natureza. Apenas ela. Uma alteração abrupta no sinal
do vídeo (o pedestal). A influência do video. As estrelas, são o quê? São
mátéria? São pontos de luz? São reflexos da luz em um corpo? São pura imagem? Pura
ilusão ótica? O céu e a terra. A areia e o mar. A noite e o dia. O tempo. Só
ele dura. Um único plano. O cinema brasileiro entre Limite e Vidas Secas. O
sertão irá virar mar? Aqui acho que não. O que me permite afirmar que Linz não
é totalmente fatalista é esse plano final, um “acidente” no meio das filmagens
e do processo de montagem.
Linz é um filme sobre o fim. Mas
todo o fim é um recomeço.
* * *
Os curtas de Leonardo Mouramateus
deixam a Maraponga e ganham o mundo. Dois – agora mais um – alunos do curso de
cinema da UFF deixam o Rio para estudar no Ceará, na modesta UFC. Breno
consegue uns R$1.000 num site de crowdfunding para poder filmar seu próximo
curta, depois do Monja. Um conjunto de alunos vai estudar no exterior, com uma
bolsa do Ciência sem Fronteiras. Samuel filma seus pais vendo televisão. Antes
havia filmado sua avó lendo cartas. Rodrigo atua no filme do Uirá e do Guto e
no curta do Breno, enquanto espera o milagre dos equipamentos na UFC. Eduardo
Escarpinelli consegue finalizar o seu Canto Nenhum, um filme estranho de
narrativa. No exílio, Thaís Dahas consegue finalizar seu curta. Tarcísio e
Clara conseguem ir a Tiradentes para apresentar o novo corte (final) do Cidade
Postal.
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