(Coisa de Cinema III) O SOM AO REDOR
Gostaria de escrever com mais
cuidado sobre O SOM AO REDOR, mas o tempo foi passando, as urgências foram me
corroendo, e só será possível fazer alguns apontamentos para tocar em alguns
pontos sobre a importância desse filme para o cenário do cinema brasileiro
contemporâneo.
A principal contribuição de O SOM
AO REDOR é ser um filme brasileiro, buscar dialogar com questões caras ao
Brasil e ao cinema brasileiro, fazer um painel social/político amplo de sua
cidade, ser uma radiografia do atual estado de coisas, não querer dar as costas
ao mundo para fazer cinema. Ainda assim, O SOM AO REDOR tem feito ampla
carreira internacional, mostrando que não é preciso se trancafiar em
referências a cineastas da grife do cinema de arte para ter seu filme incluído
no “panteão dos novos talentos do world cinema”. O tratamento estético dado ao
filme não vem ex ante do que se quer
falar, mas se articula de forma orgânica. Me parece que o objetivo primeiro do
filme é falar sobre o que está contecendo HOJE no BRASIL, e enquanto se
desenvolve isso, faz-se cinema. E não o contrário: “quero fazer cinema que
dialogue com xpto, vou procurar algo que se encaixe a isso”. O filme não adere
imediatamente aos cacoetes do cinema de arte tão em voga nos grandes festivais,
e que parece ser o principal fetiche (objeto de desejo) dos cineastas
estreantes do país. Sua preocupação parece ser, acima de tudo, um filme
brasileiro, feito por brasileiros, que dialoga com questões brasileiras, feito
para ser visto primeiramente por uma plateia brasileira, inteiramente tomado
pelas questões de sua cidade, mais do que dialogar com influências ou
referências de uma gramática cinematográfica ou de certos trejeitos dos
principais autores em moda no cinema mundial no momento. Não é que ele não o
faça, mas não parece ser a sua ambição primeira, o seu ponto de partida. Claro,
é isso, não deixando de pretender fazer um cinema sofisticado.
O SOM AO REDOR é um painel
ambicioso das relações sociais/políticas em Recife, mas podemos, sem muitas distorções,
extrapolar para o Brasil de hoje. O filme se passa numa rua, “nessa avenida
chamada Brasil” (aqui sim cabe a expressão “Avenida Brasil”...). Ali há um
microcosmos de situações, personagens e contextos que, para além de seu tom
inusitado, suas tiradas de humor, são uma análise complexa do que vivemos. Me
parece que o ponto central do filme é falar que essa “política da conciliação”,
esse “jeitinho brasileiro” de ir empurrando as tensões e as contradições do
nosso estado de ser para debaixo do tapete, algum dia vai explodir. O filme
também mostra que continuamos comprometidos até a medula, ainda que
indiretamente, com as heranças do coronelismo. Um dos resultados disso é a
“política do medo”. É um filme ambicioso, pela sua duração, pela sua ambição de
ser um painel amplo de um estado de coisas. Por sua narrativa episódica, por
seu desejo de falar de forma sutil do que está acontecendo, pelo papel dúbio de
seu protagonista, O SOM AO REDOR é o A DOCE VIDA do cinema brasileiro do século
XXI.
Mas como Kleber faz isso? Através
de uma narrativa fragmentada, com um mosaico de personagens, com um filme
essencialmente narrativo mas que ao mesmo tempo é composto de fragmentos que
não se encaixam perfeitamente. Ou seja, uma narrativa moderna. Vejo que algumas
pessoas comentam que o roteiro é composto por algumas “peças desnecessárias”,
já que, caso tiremos algumas de suas partes, não se altera a essência do todo.
Falácia! Esse é o jogo dúbio dessas narrativas fragmentadas. É exatamente disso
é que é feito o filme. De peças que não necessariamente se encaixam. Há algo
fora de lugar. Por outro lado, Kleber não faz “multiplot” ou coisa do tipo. Por
isso, é muito saudável que as coisas não se encaixem perfeitamente, mas ao
mesmo tempo esses “episódios aparentamente soltos” nos revelam muito da
natureza daquele lugar e daquelas pessoas.
Há ao mesmo tempo profundo tom de
observação sobre as contradições de uma classe média. Mas Kleber faz com
generosidade. Uma das grandes lições de O SOM AO REDOR é procurar fazer uma
radiografia profunda de um estado de coisas mas sem ao mesmo tempo querer
julgar os personagens, ou tratá-los como meras caricaturas. Há vida ali. O
coronel não é totalmente mau; o vigilante não é um brutamontes. Os personagens
têm vida para além de ser meros estereótipos, ou “representantes de tipos”. O
maior trunfo do filme é seu profundo humanismo para com seus personagens um
tanto patéticos, um tanto desesperados, um tanto oportunistas. Tenta observar
suas limitações, entendendo o estado de coisas, mas ao mesmo tempo não é um
humanismo frouxo. Tudo ali vai acumulando uma tensão que a qualquer momento vai
explodir!
Talvez a posição do realizador
seja o ponto de vista daquele que no fundo é seu personagem principal: João,
representado por Gustavo Jahn, também realizador. (Se não é a do realizador,
pelo menos é de boa parte do público de classe média brasileiro que irá
assistir ao filme, tipicamente representado pelos jovens eleitores de
Freixo/Roseno). João é o boa-praça, o bem-intencionado que consegue vislumbrar
a situação mas que pouco consegue agir para modificá-la. É um corretor de
imóveis, neto do “coronel” da “Avenida Brasil”. Exemplo típico é de uma reunião
de condomínio, onde ele reclama, mas no fundo não impede a demissão do
porteiro. O coitado do João no fundo é um fraco, mal consegue uma mulher para
si! Ele vê a situação, é bem intencionado mas é impotente para modificá-la. Na
verdade, não sabemos até que ponto ele quer transformá-la, já que também está
comprometido com ela. E por aí vai.
É impressionante a maturidade da
direção de Kleber Mendonça Filho, tendo em vista ser o seu primeiro longa
metragem. Um filme de direção: além de um olhar indiscutível, é um filme que
conjuga roteiro, fotografia, montagem (excelente o árduo trabalho de montagem
de João Maria...), direção de atores (uma lacuna do atual cinema brasileiro que
é dominado no filme, e com atores pouco conhecidos do público, que não estão na
grande mídia – com exceção de Irandhir), etc, etc. É curioso também como é
possível identificar algumas peças de seus curtas-metragens ali, como um certo
tributo ao caminho que o levou ao seu primeiro longa, mas sem que isso seja
meramente uma diluição ou afogue o filme no passado.
É difícil pensar para onde se vai
depois desse primeiro longa. É um trabalho que se propõe grande e que consegue
realizar suas ambições, seja como proposta de cinema seja como realização em
si. Se quisermos entender o que é o Brasil de hoje a partir do cinema, talvez esse seja
o filme pelo qual devemos começar!
Comentários
Cinema cabeça é bom, mas é uma merda, pois vc tem de suportar a frustração de não ser entretido tal como gostaria inicialmente, vc tem de pensar em tudo o que está assistindo, vc tem de ler as críticas favoráveis para entender do que estão falando.
Cinema cabeça está para o entretenimento tal como a psiquiatria está para a psicanálise: tem gente que não abre mão de tomar sua pilulinha da felicidade mas tem gente que não abre mão de seu percurso psicanalítico "a seco"...
Então, estejam alertados..!
Marcus Sodré