Revendo Mouchette pela quarta, quinta vez. Mouchette não está preocupado com o novo. Bresson quer nitidamente colocar um olhar próprio sobre a representação no cinema, mas está mais preocupado em dar a ver aquele mundo do que propriamente inovar. A palavra “novo” não está no vocabulário da gramática do filme. É notável a devoção de Bresson ao objeto de seu filme. Se prestarmos bem atenção, Mouchette é um filme simples. É rigoroso mas não aponta para si, para a construção do seu estilo, para penduricalhos. É cristalino, quase clássico (boa parte feito em campos-contracampos, ou com entradas e saídas de quadro à moda da continuidade clássica, ou com fusões ou fades que ilustram passagens de tempo, etc.). Decerto que as motivações da personagem são obscuras, com elipses que nos confundem às vezes, mas o filme não possui o tom subversivo dos cinemas novos. É interessante pensarmos de que modos esse filme do Bresson, lançado em 1967, tem pontos em comum com os cinemas novos, e outros pontos que o colocam numa certa posição de independência em relação a esses. Mas, como estava dizendo, Bresson não está preocupado com o novo, com os modismos. É um filme simples. Então, o que o faz especial, por que ele resiste por tanto tempo? Há algo nele que o faz contemporâneo, ancorado em seu tempo mas ao mesmo tempo para além de seu tempo. Uma tristeza dura, doída no fundo, e não na superfície. Sua essência é dura. Não considero Mouchette um filme de base realista: há diversos momentos em que Bresson, “brechtianamente”, faz questão de nos dizer que tudo é encenação: a forma como a professora segura a cabeça de Mouchette para fazê-la ouvir as teclas do piano; a forma como Mouchette derrama lágrimas; a forma como se articulam os campos-contracampos. É como se Mouchette tomasse consciência, junto com o espectador, da tragicidade de sua condição: ela “se observa observando”, assim como nós, mas não há identificação, em sentido estrito. Mouchette é uma personagem opaca, e ao mesmo tempo suas motivações são claras. A gramática brechtiana de Bresson é cristalina, conferindo ao filme um efeito quase didático: ele aprofundou esse “suposto didatismo” em L´Argent, como se mostrasse como a mesquinhez do mundo leva ao suicídio. Mas é diferente do esteticismo de um A Fita Branca, em que tudo se articula para compor o todo, como se os personagens e os elementos de cena fossem fantoches da tese do diretor. Há algo vivo que pulsa do olhar dos “modelos” de Bresson, algo inesperado que surge do seu tom “franciscano”. Se em A Fita Branca a beleza dispara para os olhos do espectador, em Bresson tudo é justo e rigoroso, mas não é propriamente belo por si. Há um distanciamento mas nem tanto. É esse “suposto didatismo” que revela claramente “de que lado Bresson está”. Ou seja, que revela a ética de sua encenação. É só pensarmos, por exemplo, na inacreditável sequência final, que nos mostra o suicídio de Mouchette. Como Bresson encenou isso? De forma desdramatizada? A princípio sim, mas não totalmente. Há uma forma lúdica em como Mouchette se mata, e em como a morte pode ser lida como um sinal de liberdade (o plano final é sintomático). Mouchette tenta uma, duas, três vezes. Depois da segunda vez, ela tenta acenar para um trabalhador num trator (esse campo-contracampo é um dos mais duros e belos do filme). É uma sequência de inacreditável coragem. Não sei se “coragem” é a palavra certa. Bresson apenas fez o que achava coerente dado o desenrolar do filme. Me parece isso. Ele apenas “seguiu em frente”. É duro. Quando acaba o filme, uma certa beleza nos invade. Mas ao mesmo tempo, uma angústia, uma tristeza. Não sei muito o que dizer, mas me parece que reconhecer essa dor nos faz sentir mais fortes. Não sei se mais “fortes”. Mas existe algo ali que me faz pensar que “o suicídio de Mouchette não foi em vão”. A morte dessa personagem é um ponto de partida para que vejamos esse filme não como mero entretenimento, mero passatempo, mas como forma de nos engajar no processo diário de contemplar nossa existência. Para quê, não sei ao certo.
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