Mostra "Olhar do Ceará" - parte I
Olhar do Ceará
A Mostra Olhar do Ceará, realizada dentro do Cine Ceará, é uma boa oportunidade para se conhecer a produção audiovisual cearense, em suas diferentes facetas. Quando se fala de uma certa produção cearense, que vem conquistando destaque no cenário nacional, fala-se na verdade de alguns filmes, que circulam nos principais festivais de cinema nacionais. No entanto, a realidade da produção cearense é mais ampla e mais diversa que esse filtro pode nos oferecer. O mesmo acontece na verdade com um conjunto de filmografias: só conhecemos o cinema argentino ou o cinema francês pelo que vemos nos grandes festivais, que filtram o nosso olhar sobre esse cinema. Por isso, a grande chave dessa mostra é a exibição de todos os filmes inscritos, independentemente de seleção. É esse caráter democrático que deve ser preservado nessa mostra, a possibilidade de que o público cearense trave contato com o bojo da produção local, sem filtros prévios, para que ele construa o seu próprio olhar. É claro que esse critério – livre, radical, aberto – chateia boa parte do público, que assiste um sem-número de filmes sem expressão, documentários didáticos, institucionais, anacrônicos, mas, independentemente disso (é só pensar uma curadoria que organizará os filmes no interior de cada sessão com Inteligência), só assim é possível examinar a “produção cearense”. Numa mesma sessão, trafegam filmes experimentais, narrativos, documentários poéticos e registros históricos, realizadores estreantes e veteranos, filmes em 35mm com o apoio de editais e outros filmados num equipamento precário, montados em casa num software free. Várias das contradições, vários dos discursos, vários dos projetos circulam entre as sessões que tem presença marcante de um público, que mesmo num dia do jogo do Brasil na Copa enche o cinema do Dragão do Mar, que resiste a tudo, até mesmo as tétricas condições de exibição dos vídeos, que prejudicou principalmente o belo As Corujas, de Fred Benevides, um curta com um trabalho sutil de luminosidade que praticamente se tornou um borrão preto na tela do cinema.
Alumbramento
Além da presença de três curtas na competição principal – Supermemórias, Cidade Desterro e A Amiga Americana –, sem contar com o longa Estrada para Ythaca, o cinema do Alumbramento marcou presença no Olhar do Ceará com outros três curtas: O Saco Azul e Flash Happy Society, ambos de Guto Parente, e As Corujas, de Fred Benevides. Esse feito comprova a amplitude do projeto do único verdadeiro coletivo de cinema do país, dada a potência do conjunto desses trabalhos, que dialogam entre si, ainda que guardando as suas nítidas diferenças.
Quando vemos em seguida os dois curtas de Guto Parente, não deixamos de nos espantar com essa diferença, que ressoa de diversas formas: de um modo de produção (o cinema em 35mm fruto de um edital e o curta em digital feito sem grana) a uma forma de estar no mundo. Ainda assim, há uma forma sempre frontal de encarar o mundo, um cinema de observação, um entrecruzamento de gêneros (um entre a ficção e o documental e outro entre o documental e o experimental), um olhar crítico sobre a cidade de Fortaleza, sobre a alienação das elites, ou ainda, a busca de um cinema sem palavras, feito apenas de imagem e som.
O Saco Azul é uma tentativa de dialogar com as contradições do modo de vida urbano da cidade de Fortaleza que possui muitas semelhanças com Quando o vento sopra, de Petrus Cariry. Guto compõe um painel da relação entre a classe média alta e a grande massa que vive na linha de pobreza – característica típica da cidade, considerada uma das mais desiguais do planeta – através de um saco azul, que armazena o lixo dos ricos que será aproveitado pelos pobres. O estranhamento desse curta é seu caráter austero: Guto não está interessado em compor propriamente um discurso crítico em tom explícito, muito menos de exaltar uma certa poesia da miséria, um elogio ao sentido de sobrevivência dos catadores. Seu tom crítico está impresso no filme no total distanciamento do filme em relação a ambas as classes: as personagens são opacas para o espectador, que tem contato com elas apenas a partir de seu corpo, ou ainda, de seus deslocamentos. Com isso, nos passa um sentimento de esvaziamento do plano, que não raramente nos desconcerta, ainda que o projeto não se realize por completo. Mas se O Saco Azul não é mera metáfora da desigualdade das relações sociais, ou mero romantismo que aponta para uma solução conciliadora, ele tampouco é o cinema de Candeias: ao se manter tão distante, Guto fecha seu discurso diante de si mesmo, quase como se fosse impossível apontar caminhos. Prova disso é o desconcertante plano final, que apresenta no som, na imagem, no movimento, no cenário, o grande protagonista de seu filme: o lixo. O saco azul, quase como um Balthazar de Bresson, torna-se uma testemunha muda da desumanização tanto de pobres quanto ricos, que aproveitam o que lhes serve e simplesmente se desfazem dos restos, convivendo com sua inexorável solidão.
Já Flash Happy Society, do qual muito se falou por sua premiada carreira nos festivais nacionais e mesmo internacionais, nos desconcerta pela simplicidade do registro e pelo alcance de sua realização. Um filme que trafega entre a ficção, o documental e o experimental. Um curta que navega entre o cinema abstrato (um filme de Kubelka, baseado na repetição e na intervenção na superfície física do filme) e o cinema político (a alienação da sociedade do espetáculo). Uma política das imagens. Um bom uso do digital. Uma pessoa fotografando (filmando) pessoas que fotografam. Um bom uso do digital criticando um mau uso do digital; um bom uso da imagem criticando um mau uso da imagem. Primeiro cinema aliado ao cinema contemporâneo: cinema da luz e das sombras, filme expressionista. Um filme de ficção científica (2001?). Mas aqui talvez Guto consiga o que não conseguiu em O Saco azul: construir imagens afetuosas a partir do que não lhe serve, do que lhe incomoda. Por trás da banalização do uso da imagem, existe uma certa poesia, como ao final se constrói um universo de estrelas cadentes, ou um novo Big Bang. Talvez. O tom exato entre ironia, crítica e desejo torna Flash Happy Society um curta notável, rico, cuja percepção se amplia a cada nova exibição.
Sobre As Corujas, ver aqui.
Dois curtas de Rodrigo Fernandez
Dois curtas de Rodrigo Fernandez também se destacaram na sessão: Alípio e Noir Sur Blanc. Em Alípio, um dos curtas premiados no edital “se essa rua fosse minha”, Rodrigo compõe um olhar particular sobre a rua Antônio Sales, uma das mais movimentadas da cidade. Filmando à noite, Rodrigo extrai um sentido de poesia, percorrendo, em tons avermelhados, seus espaços vazios, seu silêncio, o colorido dos sinais. Esvaziamento que se revela um olhar poético para esse espaço físico. De um olhar documental, o filme se desloca para uma vertente que o aproxima de um certo abstracionismo. Por fim, é curioso como a voz se conjuga ao filme, uma espécie de narração antiga que o torna um filme falsamente acadêmico. Só ao final percebemos que na verdade trata-se de versos do próprio Antônio Sales, tornando Alípio uma investigação do silêncio da memória, ou ainda, como a obra de Antônio Sales (não) ressoa pelo espaço físico que agora leva o seu nome. As relações entre as bandas de imagem e som fazem de Alípio um filme de deslocamentos, em que um sentido de abandono aponta para um olhar instigante sobre o centro urbano.
O abstracionismo também é a chave do interessante Noir Sur Blanc, trabalho radical, composto quase que exclusivamente, além dos créditos, de telas negras e brancas. Aqui, mais uma vez, Rodrigo explora uma relação dúbia entre a imagem e som, de modo que o som nunca meramente ilustra a imagem mostrada, apontando para a independência das duas camadas para a composição do sentido fílmico. Em boa parte do filme, há simplesmente uma tela negra, que remonta aos quadros do abstracionismo russo, em especial ao suprematismo de Malevich. O som, no entanto, é de um rap negro norte-americano, que aponta para um discurso político, sobre uma crítica ao modo de ver mostrado pela televisão. Desse modo, Rodrigo reflete sobre os princípios do abstracionismo como uma arte política, aliado a uma metáfora da visão. Ainda que o curta tenha soluções equivocadas (as legendas na música que quebram o tom negro da tela em contraposição à ausência de legendas nos créditos em francês, o que pode ser lido como uma certa arrogância do autor), Noir Sur Blanc comprova que, de todos os trabalhos inscritos no Olhar do Ceará, os de Rodrigo Fernandez são certamente os que mais se debruçam sobre a natureza da linguagem cinematográfica de forma coerente, tornando-o uma promessa que merece ser melhor acompanhada.
(continua...)
A Mostra Olhar do Ceará, realizada dentro do Cine Ceará, é uma boa oportunidade para se conhecer a produção audiovisual cearense, em suas diferentes facetas. Quando se fala de uma certa produção cearense, que vem conquistando destaque no cenário nacional, fala-se na verdade de alguns filmes, que circulam nos principais festivais de cinema nacionais. No entanto, a realidade da produção cearense é mais ampla e mais diversa que esse filtro pode nos oferecer. O mesmo acontece na verdade com um conjunto de filmografias: só conhecemos o cinema argentino ou o cinema francês pelo que vemos nos grandes festivais, que filtram o nosso olhar sobre esse cinema. Por isso, a grande chave dessa mostra é a exibição de todos os filmes inscritos, independentemente de seleção. É esse caráter democrático que deve ser preservado nessa mostra, a possibilidade de que o público cearense trave contato com o bojo da produção local, sem filtros prévios, para que ele construa o seu próprio olhar. É claro que esse critério – livre, radical, aberto – chateia boa parte do público, que assiste um sem-número de filmes sem expressão, documentários didáticos, institucionais, anacrônicos, mas, independentemente disso (é só pensar uma curadoria que organizará os filmes no interior de cada sessão com Inteligência), só assim é possível examinar a “produção cearense”. Numa mesma sessão, trafegam filmes experimentais, narrativos, documentários poéticos e registros históricos, realizadores estreantes e veteranos, filmes em 35mm com o apoio de editais e outros filmados num equipamento precário, montados em casa num software free. Várias das contradições, vários dos discursos, vários dos projetos circulam entre as sessões que tem presença marcante de um público, que mesmo num dia do jogo do Brasil na Copa enche o cinema do Dragão do Mar, que resiste a tudo, até mesmo as tétricas condições de exibição dos vídeos, que prejudicou principalmente o belo As Corujas, de Fred Benevides, um curta com um trabalho sutil de luminosidade que praticamente se tornou um borrão preto na tela do cinema.
Alumbramento
Além da presença de três curtas na competição principal – Supermemórias, Cidade Desterro e A Amiga Americana –, sem contar com o longa Estrada para Ythaca, o cinema do Alumbramento marcou presença no Olhar do Ceará com outros três curtas: O Saco Azul e Flash Happy Society, ambos de Guto Parente, e As Corujas, de Fred Benevides. Esse feito comprova a amplitude do projeto do único verdadeiro coletivo de cinema do país, dada a potência do conjunto desses trabalhos, que dialogam entre si, ainda que guardando as suas nítidas diferenças.
Quando vemos em seguida os dois curtas de Guto Parente, não deixamos de nos espantar com essa diferença, que ressoa de diversas formas: de um modo de produção (o cinema em 35mm fruto de um edital e o curta em digital feito sem grana) a uma forma de estar no mundo. Ainda assim, há uma forma sempre frontal de encarar o mundo, um cinema de observação, um entrecruzamento de gêneros (um entre a ficção e o documental e outro entre o documental e o experimental), um olhar crítico sobre a cidade de Fortaleza, sobre a alienação das elites, ou ainda, a busca de um cinema sem palavras, feito apenas de imagem e som.
O Saco Azul é uma tentativa de dialogar com as contradições do modo de vida urbano da cidade de Fortaleza que possui muitas semelhanças com Quando o vento sopra, de Petrus Cariry. Guto compõe um painel da relação entre a classe média alta e a grande massa que vive na linha de pobreza – característica típica da cidade, considerada uma das mais desiguais do planeta – através de um saco azul, que armazena o lixo dos ricos que será aproveitado pelos pobres. O estranhamento desse curta é seu caráter austero: Guto não está interessado em compor propriamente um discurso crítico em tom explícito, muito menos de exaltar uma certa poesia da miséria, um elogio ao sentido de sobrevivência dos catadores. Seu tom crítico está impresso no filme no total distanciamento do filme em relação a ambas as classes: as personagens são opacas para o espectador, que tem contato com elas apenas a partir de seu corpo, ou ainda, de seus deslocamentos. Com isso, nos passa um sentimento de esvaziamento do plano, que não raramente nos desconcerta, ainda que o projeto não se realize por completo. Mas se O Saco Azul não é mera metáfora da desigualdade das relações sociais, ou mero romantismo que aponta para uma solução conciliadora, ele tampouco é o cinema de Candeias: ao se manter tão distante, Guto fecha seu discurso diante de si mesmo, quase como se fosse impossível apontar caminhos. Prova disso é o desconcertante plano final, que apresenta no som, na imagem, no movimento, no cenário, o grande protagonista de seu filme: o lixo. O saco azul, quase como um Balthazar de Bresson, torna-se uma testemunha muda da desumanização tanto de pobres quanto ricos, que aproveitam o que lhes serve e simplesmente se desfazem dos restos, convivendo com sua inexorável solidão.
Já Flash Happy Society, do qual muito se falou por sua premiada carreira nos festivais nacionais e mesmo internacionais, nos desconcerta pela simplicidade do registro e pelo alcance de sua realização. Um filme que trafega entre a ficção, o documental e o experimental. Um curta que navega entre o cinema abstrato (um filme de Kubelka, baseado na repetição e na intervenção na superfície física do filme) e o cinema político (a alienação da sociedade do espetáculo). Uma política das imagens. Um bom uso do digital. Uma pessoa fotografando (filmando) pessoas que fotografam. Um bom uso do digital criticando um mau uso do digital; um bom uso da imagem criticando um mau uso da imagem. Primeiro cinema aliado ao cinema contemporâneo: cinema da luz e das sombras, filme expressionista. Um filme de ficção científica (2001?). Mas aqui talvez Guto consiga o que não conseguiu em O Saco azul: construir imagens afetuosas a partir do que não lhe serve, do que lhe incomoda. Por trás da banalização do uso da imagem, existe uma certa poesia, como ao final se constrói um universo de estrelas cadentes, ou um novo Big Bang. Talvez. O tom exato entre ironia, crítica e desejo torna Flash Happy Society um curta notável, rico, cuja percepção se amplia a cada nova exibição.
Sobre As Corujas, ver aqui.
Dois curtas de Rodrigo Fernandez
Dois curtas de Rodrigo Fernandez também se destacaram na sessão: Alípio e Noir Sur Blanc. Em Alípio, um dos curtas premiados no edital “se essa rua fosse minha”, Rodrigo compõe um olhar particular sobre a rua Antônio Sales, uma das mais movimentadas da cidade. Filmando à noite, Rodrigo extrai um sentido de poesia, percorrendo, em tons avermelhados, seus espaços vazios, seu silêncio, o colorido dos sinais. Esvaziamento que se revela um olhar poético para esse espaço físico. De um olhar documental, o filme se desloca para uma vertente que o aproxima de um certo abstracionismo. Por fim, é curioso como a voz se conjuga ao filme, uma espécie de narração antiga que o torna um filme falsamente acadêmico. Só ao final percebemos que na verdade trata-se de versos do próprio Antônio Sales, tornando Alípio uma investigação do silêncio da memória, ou ainda, como a obra de Antônio Sales (não) ressoa pelo espaço físico que agora leva o seu nome. As relações entre as bandas de imagem e som fazem de Alípio um filme de deslocamentos, em que um sentido de abandono aponta para um olhar instigante sobre o centro urbano.
O abstracionismo também é a chave do interessante Noir Sur Blanc, trabalho radical, composto quase que exclusivamente, além dos créditos, de telas negras e brancas. Aqui, mais uma vez, Rodrigo explora uma relação dúbia entre a imagem e som, de modo que o som nunca meramente ilustra a imagem mostrada, apontando para a independência das duas camadas para a composição do sentido fílmico. Em boa parte do filme, há simplesmente uma tela negra, que remonta aos quadros do abstracionismo russo, em especial ao suprematismo de Malevich. O som, no entanto, é de um rap negro norte-americano, que aponta para um discurso político, sobre uma crítica ao modo de ver mostrado pela televisão. Desse modo, Rodrigo reflete sobre os princípios do abstracionismo como uma arte política, aliado a uma metáfora da visão. Ainda que o curta tenha soluções equivocadas (as legendas na música que quebram o tom negro da tela em contraposição à ausência de legendas nos créditos em francês, o que pode ser lido como uma certa arrogância do autor), Noir Sur Blanc comprova que, de todos os trabalhos inscritos no Olhar do Ceará, os de Rodrigo Fernandez são certamente os que mais se debruçam sobre a natureza da linguagem cinematográfica de forma coerente, tornando-o uma promessa que merece ser melhor acompanhada.
(continua...)
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