Tombée de nuit sur Shangai
Tombée de nuit sur Shangai
(episódio de O Estado do Mundo)
de Chantal Akerman
****
A Fundação Calouste Gulbenkian convidou seis cineastas de diferentes partes do mundo, para, apresentar, num curta de cerca de quinze minutos, sua visão particular sobre “o estado do mundo”: um da Índia, um do Brasil, um da China, um da Tailândia, e dois da Europa (um português e uma francesa). Uma das convidadas foi a realizadora francsa Chantal Akerman que fez em “Tombée de nuit sur Shangai”, o epiósdio obra-prima desse filme em episódios.
A radicalidade de “Tombée de nuit sur Shangai” choca apenas aqueles que (ainda) não conhecem o cinema de Chantal Akerman, pois ele representa um caminho de continuidade do trabalho da realizadora francesa. Diante dessa continuidade, Akerman, no entanto, se colocou diante de uma questão, base do filme: “qual é o estado do mundo?”. Mas de fato, é como se Chantal refizesse a questão: faz mais sentido pensarmos não propriamente no “mundo como ele é”, e sim “como o cinema pode representar o estado do mundo”. Por isso, refletir sobre “o estado do mundo” é também refletir sobre “o estado do cinema”, e daí vem a opção pelo cinema contemporâneo. Seu episódio é portanto uma reflexão de como o cinema de hoje pode enxergar o mundo de hoje.
Mas “o cinema de hoje” ou “o cinema contemporâneo” não podem ver: eles também são representações ilusórias, fictícias. Quem vê é o indivíduo. Por isso, mais que “como o cinema de hoje enxerga o mundo de hoje”, Akerman amplia seu conceito para “como ELA (uma realizadora singular) vê o cinema de hoje se debruçando sobre o mundo de hoje”. Essa é uma boa definição para começarmos a entender o que está em jogo neste filme.
Tombée de nuit sur Shangai é composto de sete planos. Quando o vemos pela primeira vez, temos a impressão de ser um episódio com planos longos e de câmera estática, mas não é isso o que acontece. Apenas o plano 3 e especialmente o plano 7 têm essa característica, especialmente o último plano, com mais de nove minutos. Mas na verdade há planos com câmera na mão e inclusive um com movimento, por trás de uma vidraça.
O “estado do mundo”: talvez a essência do “mundo contemporâneo” seja a China, local de enormes transformações, de contato com a mais alta tecnologia e que dialoga com os maiores atrasos de um regime autocrático.
O “cinema contemporâneo”: o diálogo entre ficção e documentário. Um cinema de observação que, já pelo título, dialoga com os Irmãos Lumière. Os lugares físicos e as pessoas.
O cinema de Chantal Akerman faz com que o espectador “reaprenda a ver”: estado do mundo, estado do cinema, estado do indivíduo. Cinema dos Lumière, cinema contemporâneo, filme-zen: oásis completo diante de um mundo que não compreendemos, mergulho íntimo em um mundo de que somos parte. Um pôr-do-sol, um casal ao longe, pessoas através de vidraças, um ou dois barcos, muitas fachadas de neon.
O mundo, o cinema, eu: fugacidade e paralisia. Techno com música clássica. O mar e o neon. O cinema dos Lumière e o cinema contemporâneo. O cinema como experiência, próxima e impenetrável como o mundo. Ou como uma das vidraças dos bares de Shangai, nas quais refletem os letreiros luminosos.
E aí vem aquele plano final: um dos mais acachapantes do cinema contemporâneo. Frase-síntese de uma gramática: observar as transformações (de luz, de som, de almas) que passam diante de nós (ou não passam?).
De enorme coragem, singeleza, maturidade e pesquisa estética, Tombée de nuit sur Shangai é, junto com o primeiro espisódio de Five, de Abbas Kiarostami, a melhor síntese dos caminhos do cinema contemporâneo.
Ave Chantal!
(episódio de O Estado do Mundo)
de Chantal Akerman
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A Fundação Calouste Gulbenkian convidou seis cineastas de diferentes partes do mundo, para, apresentar, num curta de cerca de quinze minutos, sua visão particular sobre “o estado do mundo”: um da Índia, um do Brasil, um da China, um da Tailândia, e dois da Europa (um português e uma francesa). Uma das convidadas foi a realizadora francsa Chantal Akerman que fez em “Tombée de nuit sur Shangai”, o epiósdio obra-prima desse filme em episódios.
A radicalidade de “Tombée de nuit sur Shangai” choca apenas aqueles que (ainda) não conhecem o cinema de Chantal Akerman, pois ele representa um caminho de continuidade do trabalho da realizadora francesa. Diante dessa continuidade, Akerman, no entanto, se colocou diante de uma questão, base do filme: “qual é o estado do mundo?”. Mas de fato, é como se Chantal refizesse a questão: faz mais sentido pensarmos não propriamente no “mundo como ele é”, e sim “como o cinema pode representar o estado do mundo”. Por isso, refletir sobre “o estado do mundo” é também refletir sobre “o estado do cinema”, e daí vem a opção pelo cinema contemporâneo. Seu episódio é portanto uma reflexão de como o cinema de hoje pode enxergar o mundo de hoje.
Mas “o cinema de hoje” ou “o cinema contemporâneo” não podem ver: eles também são representações ilusórias, fictícias. Quem vê é o indivíduo. Por isso, mais que “como o cinema de hoje enxerga o mundo de hoje”, Akerman amplia seu conceito para “como ELA (uma realizadora singular) vê o cinema de hoje se debruçando sobre o mundo de hoje”. Essa é uma boa definição para começarmos a entender o que está em jogo neste filme.
Tombée de nuit sur Shangai é composto de sete planos. Quando o vemos pela primeira vez, temos a impressão de ser um episódio com planos longos e de câmera estática, mas não é isso o que acontece. Apenas o plano 3 e especialmente o plano 7 têm essa característica, especialmente o último plano, com mais de nove minutos. Mas na verdade há planos com câmera na mão e inclusive um com movimento, por trás de uma vidraça.
O “estado do mundo”: talvez a essência do “mundo contemporâneo” seja a China, local de enormes transformações, de contato com a mais alta tecnologia e que dialoga com os maiores atrasos de um regime autocrático.
O “cinema contemporâneo”: o diálogo entre ficção e documentário. Um cinema de observação que, já pelo título, dialoga com os Irmãos Lumière. Os lugares físicos e as pessoas.
O cinema de Chantal Akerman faz com que o espectador “reaprenda a ver”: estado do mundo, estado do cinema, estado do indivíduo. Cinema dos Lumière, cinema contemporâneo, filme-zen: oásis completo diante de um mundo que não compreendemos, mergulho íntimo em um mundo de que somos parte. Um pôr-do-sol, um casal ao longe, pessoas através de vidraças, um ou dois barcos, muitas fachadas de neon.
O mundo, o cinema, eu: fugacidade e paralisia. Techno com música clássica. O mar e o neon. O cinema dos Lumière e o cinema contemporâneo. O cinema como experiência, próxima e impenetrável como o mundo. Ou como uma das vidraças dos bares de Shangai, nas quais refletem os letreiros luminosos.
E aí vem aquele plano final: um dos mais acachapantes do cinema contemporâneo. Frase-síntese de uma gramática: observar as transformações (de luz, de som, de almas) que passam diante de nós (ou não passam?).
De enorme coragem, singeleza, maturidade e pesquisa estética, Tombée de nuit sur Shangai é, junto com o primeiro espisódio de Five, de Abbas Kiarostami, a melhor síntese dos caminhos do cinema contemporâneo.
Ave Chantal!
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