Por um cinema puro

Sinfonia Diagonal
De Vicking Eggeling, 1925
***

Black Ice
De Stan Brakhage, 1994
***½

Muito elogiada no livro de Jean Mitry sobre o cinema experimental, a Sinfonia Diagonal, de Vicking Eggeling, foi a obra que escolhi para inaugurar minha entrada no mundo dos downloads, das bandas largas e dos emules da vida. Terrível ingresso, que me tirará o raro tempo de folga que ainda me resta, porque já estou há dias em frente a este maldito computador, junto a esta tartaruga lunática que é o tal de emule. Junto com ela, para fazer uma dobradinha dos meus estudos de “filmes abstratos”, estou baixando (os outros ainda estão lá na fila...) um filme recente de Stan Brakhage, chamado Black Ice. Entre os dois lá se vão cerca de 70 anos. Muita coisa mudou, e não só no cinema. Mas ver essas duas obras em conjunto nos permite grandes reflexões sobre a natureza do cinema.

Se o cinema é feito de luz e movimento, então Eggeling descobriu a fórmula do cinema. Para este artista sueco, que teve sua origem nas artes plásticas, o cinema deveria ser diferente das demais artes porque tem características próprias. Tudo o que é supérfluo nessa busca pelo essencial da linguagem cinematográfica, Eggeling deixa para trás. Sua Sinfonia Diagonal, portanto, um filme de sete minutos que lhe consumiu quase quatro anos para sua realização, pode ser vista como uma espécie de tratado científico das potencialidades do cinema como expressão artística, ou seja, trabalho de um cientista compenetrado a dissecar a linguagem do cinema em seu leque variado de formas, ritmos, curvas, constrastes e estruturas.Sua inserção no movimento vanguardista da época e seu desejo de que o cinema não fosse mera reprodução do naturalismo herdado da literatura e do teatro são nítidos. A herança do construtivismo e o forte apelo formalista de seu cinema avançam para o primeiro plano, mas, como típico alemão, é possível ir além dessa chave inicial para descobir outra influência: a do expressionismo alemão, com formas que nos lembram escadas, pontes, degraus, e que insistem em fechar-se diante de si mesmas, para dentro de si mesmas, com uma espécie de fatalismo de inspiração cíclica que tanto nos perturba ao ver esse trabalho. Os movimentos de formas, no início simples, se multiplicam, montando-se e desmontando-se como se num jogo de luz e sombras, ou ainda, num jogo de tema e variações. A liberdade com que Eggeling trabalha essas formas, em como combina os surgimentos e desaparecimentos de formas ora côncavas ora convexas, ora retas ora curvas, ao mesmo tempo não oculta sua enorme preocupação com a estrutura do filme como um todo e sua quase obsessão por uma organicidade.

Já Black Ice é um trabalho pouco visto de Stan Brakhage feito setenta anos após o Sinfonia Diagonal, obra de um realizador veterano, que dedicou grande parte de sua vida nesta mesma linha, após seus experimentos com os “hand painted films”. Se Eggeling via sua contribuição como cineasta no campo da pesquisa estética através do conhecimento de uma linguagem, como um tratado científico, para Brakhage, o mesmo cinema de luz e movimento serve como uma metafísica, como uma verdadeira cosmogonia do cinema. Ver Black Ice, a depuração de todo um caminho de depuração estética – e que vai de encontro exatamente a um encantamento do olhar e da resignificação dos sentidos – é como mergulhar na caverna de Platão, é perceber que o cinema ainda pode ser o caminho do novo se nos curvarmos para suas origens. Totalmente sem som (como é a característica dos filmes de Brakhage) entramos numa espécie de montanha russa de indizível significado simbólico, num processo de imersão mítico que nos faz questionar diretamente qual o papel do cinema e dos sentidos na sociedade contemporânea, num mundo capitalista. Como se fosse uma obra de Bach, variações em termos de temas e recursos de fugas, acentuados por sobreimpressões de diferentes ritmos e texturas, se formam em torno de figuras que avançam para o primeiro plano e invadem a retina do espectador. Uma invasão, no entanto, que se revela lírica, e que acaba se opondo ao caminho materialista e construtivista do cinema de Eggeling. Em busca de um cinema puro, Black Ice ainda revela a materialidade desse processo de busca pelo metafísico no extraordinário recurso do início e final, quando variações de cor revelam as pontas de início e de fim do filme.

Estes dois filmes, feitos por realizadores de distintas visões de mundo e formações profissionais, revelam um dos melhores esforços na busca de um cinema puro, que não estivesse contaminado com a prostituição (como disse Bergman), na busca por um cinema de valorização dos sentidos, por um verdadeiro “filme abstrato”. Mesmo uma década depois das vanguardas dos anos vinte, Brakhage nos mostra que esse trabalho continua cada vez mais vivo e atual. E mais: que esse trabalho de vigor artístico não necessariamente se confunde com o formalismo e que vai na direção contrária às manias dos games e dos videoclipes, cada vez mais emm moda, e que cada vez menos nos dizem algo de íntimo e de verdadeiro em termos de linguagem e de vida.

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