TOP GUN: MAVERICK
TOP GUN: MAVERICK
Kristin Kosinski
2022
Pode parecer cusioso, mas me parece
haver algo em comum em filmes tão diferentes quanto Era uma vez em Hollywood
(Tarantino), Licorice Pizza (PTAnderson) e este Top gun: Maverick: a defesa da
velha Hollywood. Uso a expressão “velha” com certa ironia, porque esses autores
buscam resgatar recursos da Hollywood dos anos 1970/1980 que, na época, eram
rotulados como “a nova Hollywood”. Pois os novos também se tornam velhos, e,
nesse mundo do capitalismo contemporâneo pós-Internet, a velhice chega cada vez
mais rápido, pois os produtos e os modismos precisam ser cada vez mais
rapidamente substituídos por outros, nessa eterna sucessão da temporada de
novidades (até no cinema brasileiro, já se decretou que o “novíssimo cinema
brasileiro” se tornou velho, atropelado pelo “cinema identitário”).
A Hollywood que hoje se
apresenta como nova é na verdade uma mera peça de uma engrenagem oriunda do
Vale do Silício. Os filmes fazem parte de grandes corporações midiáticas, de
empresas de telecomunicações que não mais fazem filmes, mas em última instância
criam “universos cinemáticos”, no meio de grandes obras transmidiáticas que
entrecruzam marcas e totens para uma multiplicação do capital em espiral.
Se Tarantino e Anderson buscam
recuperar o espírito da nova-velha Hollywood dos anos 1970, Top Gun Maverick
parece querer fazê-lo de uma forma menos romântica, mais direta e pragmática
que seus antecessores. Em comum, os três filmes buscam se centrar numa ideia de
nostalgia, mas, nesse novo Top Gun, a nostalgia parece mais um instrumento de
marketing moldado para reproduzir os mesmos elementos da indústria do capital.
Mas, por outro lado, Top Gun parece mais adaptado aos novos tempos: ele não apenas
se lamenta que Hollywood é diferente, mas resolve agir para fazer algo diante
disso, de modo a manter certos rastros de sua existência. Nisso, o filme é
muito belo, porque parte da consciência do fim, mas, mesmo assim, não se
conforma, e procura agir da forma possível.
Colocando de outra forma, ao
ver Top gun: Maverick, a primeira coisa que me lembrei foi do cinema de John
Ford (esse sim um representante da velha Hollywood, velha mesmo, aquela da
década de 1930, do pré-2ª Guerra). E me lembrei daquela maravilhosa frase dita
por Jean-Claude Brisseau sobre o cinema de Ford: “A coisa que mais me toca no
cinema de Ford, algo que desapareceu completamente no cinema, é o fato dos
personagens serem confrontados com a decepção e o fracasso, serem obrigados a
digerir uma humilhação - diríamos agora uma ferida narcísica - e continuarem a
viver assim mesmo, sem chorar como pirralhos. Os personagens de Ford aguentam,
continuam mantendo uma certa grandeza." (ver aqui)
Me interesso pelo novo Top gun
por sua abordagem ética. Ou seja, é essa grandeza diante da decepção e do
fracasso que o filme busca lidar. Mas ele não está preocupado em meramente
lamentar a transformação dos rumos das coisas, ou tratar seu personagem como
mera vítima dos novos tempos (a Marinha que muda, as injustiças do poder, a
falta de reconhecimento, o tempo que arrasta a juventude), ou seja, sua mise en
scène nunca quer transformar sua nostalgia num mero poço passadista de
lamentações. Mas, assim como o personagem de Tom Cruise (em atuação memorável,
à altura dos melhores personagens de Wayne e Bogart), ele procura “nos ensinar”
que talvez ainda seja possível que os novos “aprendam” com os chamados velhos.
E, o que é bonito do filme, que isso só será possível se os velhos se colocarem
em posição de igualdade, teimando em permanecer como meros pilotos e não como
comandantes em seus camarotes palacianos, teimando em sujar suas mãos de
poeira, e permanecer voando em alta velocidade a poucos metros do chão, isto é,
permanecerem mantendo acesa essa chama de acreditar que é possível atingir o
impossível, desafiando os produtores-almirantes das instituições-capital (a
Marinha ou Hollywood, não importa).
Top Gun: Maverick é um filme de ação que
parece um game (quatro pilotos precisam passar de uma fase com obstáculos antes
que o tempo acabe) mas que possui ao mesmo tempo uma intensa e complexa jornada
do heroi existencial. O que me interessa nesse filme é justamente essa
combinação aparentemente esdrúxula desses dois elementos. Maverick é o grande
talento, o exímio piloto, mas que permaneceu para sempre como capitão. Seu
passado é tudo o que ele tem, seu legado, mas ao mesmo tempo, há algo que ele
precisa esquecer. “Já é hora de esquecer”, fala a ele o velho almirante (Ford rs)
que esse sim está morrendo. Ora, é preciso esquecer, porque, como diria Ozu, o
mundo já é outro, e no relógio da máquina de guerra que é a indústria bélica de
Hollywood, o tempo não para, e os talentos e modismos precisam cada vez mais entrar
em obsolescência programada pela eterna máquina de produção de novidades e quinquilharias.
É preciso lembrar na mesma medida em que é preciso esquecer. Desse modo, esse
heroi apenas conseguirá cumprir sua jornada se não negar sua velhice mas também
se conseguir esquecer. É quando Ozu e Ford se encontram: mais Ozu impossível
rs.
Talvez seja por isso que, em
sua meia hora final, Top gun vire um game contemporâneo, um blockbuster quase como
qualquer outro, e abandone quase por completo sua jornada existencial. Porque Kosinski
(um diretor que está longe de ser um autor, tendo origem na indústria de
comerciais e de computação gráfica) sabe que é preciso prosseguir, e não ficar
chorando no travesseiro como uma criança: esse heroi solitário terá que lidar
com todas as circunstâncias do destino, e fazer algo diante disso, fazer algo
mesmo diante de um mundo aparentemente insensível e cruel.
Ao final, como típico filme de
Hollywood, o heroi sai transformado de sua jornada, cura sua chada do passado,
ensina os novos herois, e ainda conquista a mocinha que espera por ele rs.
Talvez o resgate da “velha-nova” Hollywood não signifique muita coisa, seja
apenas uma sedutora e sentimental embalagem publicitária na máquina de produção
de afetos e lucros do capitalismo contemporâneo. Top gun certamente não está
interessado na rebeldia da revolução do cinema de autor, mas, ao mesmo tempo,
fico pensando que, de forma surpreendente, algo do espírito ético de uma
geração de lendários artistas possa se perpetuar, de forma misteriosa e
secreta, por dentro das engrenagens desse mero produto bélico.
Talvez Top gun não mude nada,
mas, enquanto o Capitão não chega para abortar a última missão, vamos ficar
provisoriamente com o pensamento de que isso ainda é possível, o avião dos
sonhos do cinema (o tal F-14 que mais parece uma Éclair 35mm) voar pela última
vez, ou como diria Maverick num dos diálogos do filme “pelo menos hoje me deixa
acreditar que ainda não é tarde demais”.
Top gun: Maverick é um filme que
reflete sobre o papel do artista diante dos nossos tempos, em que o capital, as
aparências e o falso reconhecimento engolem tudo. O filme permanece do lado de
alguém que teimou em manter suas convicções, custe o que custar, mesmo pagando
um preço por isso.
Seria eu louco ao sugerir que talvez
Top gun: Maverick tenha muito mais utopia que Marte um?
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