MARIGHELLA

MARIGHELLA

de Wagner Moura



O filme de Wagner Moura procura apresentar a história da luta armada brasileira por meio de uma narrativa ficcional, em torno do guerrilheiro Marighella. Não se trata meramente de um convescote histórico: os possíveis paralelos com o Brasil de hoje são inequívocos, alimentados pelas declarações incisivas do diretor na world première no Festival de Berlim. Além disso, deve-se perceber que Marighella era um radical: ele propunha a total recusa de um pacto de conciliação, mas a resposta por meio de violência armada, custe o que custar, ainda que isso represente um isolamento do campo mais hegemônico da oposição, e mesmo a certeza da morte.

É preciso, portanto, perceber a gravidade das forças que estão em jogo com a proposta do filme de Moura. Quando o cinema (a arte) trata de questões sociais e políticas urgentes de nossa sociedade, ele deixa de ser apenas um filme, de modo que o realizador precisa ter a mais aguda consciência de que impactos essa obra pode gerar no mundo, por uma questão ética.

Pois bem. A questão que se coloca diante de um filme como esse é: para quem contar essa história? No caso de Marighella, produzido pela O2 Filmes, uma das maiores empresas produtoras brasileiras, com origem na publicidade, a estratégia é produzir um thriller político de ação voltado para consumo de massa, no país e no exterior. Assim sendo, parte-se do velho dilema: para se atingir um público maior, é preciso utilizar os instrumentos da comunicação de massa hegemônicos, de forma a seduzir e atrair o público, aumentando seu potencial de comunicabilidade.  É, preciso, portanto, se inserir no sistema para que a mensagem seja disseminada o máximo possível.

Essa é uma estratégia não somente de mise en scène mas sobretudo ética e política. Assim, para obter tais efeitos, o radical guerrilheiro Marighella é retratado como um personagem sedutor com o qual o espectador deve se identificar. Marighella é um guerrilheiro pop, tal como o dizer de uma propaganda da Globo: “é agro, é tech, é pop, tá na Globo!”. A luta armada é entremeada com episódios da vida pessoal, especialmente a sua relação com seu filho. Marighella não é só um guerrilheiro, é um pai, o que fisga o espectador pelo fígado.

Marighella é apresentado aos moldes do sistema hegemônico. Fica o embate: essa é uma estratégia adequada, pois, dessa forma, um maior número de pessoas passa a ter acesso a outras visões de mundo, ou essa é uma estratégia perigosa, porque o personagem é capturado pelo sistema, apresentado de forma caricata e domesticada, apagando ou quase revertendo seu impacto subversivo?

Fico imaginando mil conversas numa mesa de bar em torno dessa questão, e como ela, de certa forma, envolve os paradoxos do “presidencialismo de coalizão” e das próprias alianças desenvolvidas desde sempre pelo nosso sistema político, que desembocaram na situação em que estamos. O que procuro lançar é que esse é, no fundo, um falso embate, baseado numa falsa premissa: a ideia do “perde-ganha”. É preciso fazer um pouco de concessão, perder um pouco, para ganhar acolá. Em vez disso, precisamos estabelecer uma forma ética de lidar com a arte e a política que transcenda esse falso embate, pois isso é uma armadilha, uma forma de legitimar as velhas estratégias do poder. Para reverter o jogo, é preciso colocar a questão de outra forma, por meio de um “ganha-ganha”. Para se comunicar com o público, não é preciso, necessariamente, utilizar os procedimentos do modelo hegemônico, pois ainda há arte popular que não adere plenamente aos modelos institucionalizados pelo mercado. Precisamos quebrar as dicotomias entre “filme-de-mercado” e “filme-de-festival”, pois esse é um falso embate que apenas fragiliza o campo do cinema brasileiro. 

Além disso, a internet, as redes sociais e as novas mídias estão rachando o modelo hegemônico de comunicação, mas, apresentado dessa forma, o filme parece ainda legitimar esses modelos institucionalizados como se ainda fossem inescapáveis. Mesmo dentro da lógica proposta pelo filme, se a ideia fosse tornar o guerrilheiro pop, deveria se buscar um “Marighella tik-tok”, e não um “Marighella Globo” (ou seja, o filme é tão anacrônico que busca se ancorar com uma institucionalização que ele não percebe que já está velha, dando base de sustentação às velhas oligarquias, enquanto as novas já são outras).

De todo modo, Marighella (o filme) gera barulho, é explosivo, causa polêmica, provoca reações extremadas. Que debate o filme pode gerar? Me parece que um conjunto grande de pequenos falsos debates, assim como Tropa de Elite pode trazer um falso debate sobre segurança pública, especialmente formatado para as manchetes das polêmicas sensacionalistas dos veículos de comunicação que buscam a audiência acima do debate, pois a audiência gera dinheiro, e a política é comandada, nos tempos de hoje, pelo capital. E o capital não tem ideologia. A quem serve um filme como Marighella? No fim das contas, me parece que é um grande sintoma dos nossos tempos que um de nossos líderes mais radicais, aquele que entregou sua própria vida pela ideia de que não é possível qualquer possibilidade de conciliação, seja apresentado por meio de uma linguagem que o insere no bojo do mais hegemônico dos sistemas de comunicação. Ao “conceder um pouco para atrair o público”, o filme trai o espírito de seu personagem, pois acaba entregando tudo, entregando o que é mais importante, e esse talvez seja o grande gesto de Marighella, mais até do que a opção direta pela luta armada: a necessidade ética de lutar por um ideal, sem fazer concessões, custe o que custar. Pois Marighella (o filme) no fundo acaba por transformar seu personagem numa mercadoria, e seu impacto revolucionário nos corações e mentes das novas plateias deve durar da saída da sala do cinema até a chegada na praça de alimentação.


            


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