O BARCO

O BARCO

    de Petrus Cariry



Os três primeiros longas-metragens de Petrus Cariry integram o que o próprio autor denomina de “trilogia da morte”. O grão (2007), Mãe e filha (2011) e Clarrise – ou alguma coisa sobre nós dois (2015) compõem uma unidade, uma atmosfera em comum, em torno da ideia de que uma pulsão de morte conduz às personagens que sobrevivem a uma experiência transformadora.

Quando Petrus começou o processo de realização de O barco (2018), uma adaptação pessoal do conto homônimo do escritor cearense Carlos Emílio Corrêa Lima, ele costumava dizer que havia encerrado sua trilogia e agora embarcava em outro ciclo, com um filme mais ensolarado e aberto. A proximidade com a natureza exuberante da Praia das Fontes, no interior do Ceará, poderia levar a essa conclusão: o mar, o sol, o movimento do trabalho, as crianças brincando na areia da praia, a sensualidade de um amor poderiam ser listados como elementos que se afastariam do cenário da morte e da dor, elementos-base do cinema de Petrus. Mas, à medida que o filme se desenvolve, vamos percebendo, cada vez mais, que na verdade não estamos tão distantes do território instalado nos filmes anteriores. 

O barco, quarto longa-metragem de Petrus, talvez seja seu filme mais misterioso e, ao mesmo tempo, um filme que sintetiza todas as dores e delícias desse caminho, absolutamente solitário dentro do cinema brasileiro – o cinema de Petrus é esse próprio barco, encalhado nessa ensolarada ilha chamada de cinema cearense, que nem representa o típico cinema regionalista nordestino dos anos noventa nem se integra plenamente ao “cinema de garagem” cearense, como os filmes do coletivo Alumbramento. O barco é, na verdade, uma encruzilhada: é curioso usarmos um entroncamento como imagem, em se tratando de uma obra filmada em scope, aproveitando toda a horizontalidade do espaço semiparadisíaco. Mas os amplos grandes planos gerais ensolarados são entrecruzados com imagens da masmorra: interiores claustrofóbicos sombrios, filmados à luz de vela, quase como em Mãe e Filha, banhados de uma palheta de cores frias, entre o cinza e o marrom. O que o mar traz de novo – ou de vida – ao cinema de Petrus?

O barco é sobre “um caminho repleto de dúvidas”, entre a vontade de sair e o desejo de ficar. Partir ou ficar. “Para onde? Para onde?” Assim é o cinema de Petrus. Faço essa analogia não apenas no sentido do desenvolvimento da trama e dos personagens mas em especial quanto ao papel da imagem, na sua adesão e recusa do classicismo. O barco é um filme clássico; ao mesmo tempo, flerta com o contemporâneo, mas permanece mais próximo do barroco. Mãe e filha já havia expressado essas ambiguidades reproduzindo um quadro de Ofélia, pintado por John Everett Millais, da irmandade pré-rafaelita, movimento solitário na história da arte, como uma ilha entre o classicismo e o barroco maneirista.

O classicismo de O barco não está expresso por meio da transparência da narrativa mas pelo papel da imagem como espelho plácido de uma aderência a um ideal de equilíbrio, harmonia e beleza, em suma, pelo gosto por uma certa tradição. Se é possível propor uma relação a uma linhagem de filmes pesqueiros brasileiros como Aitaré da Praia, Arraial do Cabo, ou mesmo com Barravento, no filme de Petrus, a busca por um grande refinamento estilístico aponta para uma beleza plástica das imagens, e ao mesmo tempo para a sua imobilidade. Não existe propriamente uma curiosidade documental em retratar o dia a dia da comunidade pesqueira ou de suas relações sociopolíticas de trabalho. O filme está mais próximo de uma fábula do que do documental. É como se a praia, o mar, o vento fossem metáforas da condição interior do personagem principal, ainda que ele permaneça razoavelmente opaco. Ele muda, mas nem tanto, talvez nem mude tanto assim. O quanto muda? A sereia que surge do mar, se muda os rumos do personagem, parece não alterar de forma definitiva a estrutura do filme, que permanece milimetricamente sólida, encantada pelos feitiços da beleza de sua própria realização. Nesse aspecto, a relação do protagonista jovial e curioso (Rômulo Braga) com o ancião velho e cego (Everaldo Pontes) pode ser extrapolada para esse desejo em romper com a tradição, com a opção do próprio filme por uma estética de uma arquitetura de enorme solidez para desvelar um desmoronamento que na verdade nunca é mostrado de forma explícita, mas apenas sugerido. Assim, O barco parece misteriosamente dialogar com alguns filmes contemporâneos como Obra, de Gregorio Graziozi, embora os filmes se passem em espaços muito distintos (a megalópole de São Paulo e a especulação imobiliária, o interior do Ceará e o isolamento da comunidade praieira). Ou ainda, se preferirmos, seguindo a linhagem da cinematografia cearense, O barco misteriosamente parece se aproximar de Linz, esse filme-ilha de Alexandre Veras, que respira em todos os seus planos uma beleza solitária, um profundo desejo de isolamento e reclusão. Essa convicção de que a beleza, se não está nas pessoas, só pode ser encontrada na imagem. Essa natureza bela e romântica que não pode ser tocada ou vivida mas contemplada como algo distante, inacessível.

Pois se O barco abandona o pilar de sua “trilogia da morte” (a proximidade da morte como instância de transformação dos personagens que ficam), ele guarda, de seus três longas-metragens anteriores, o conflito entre gerações familiares como símbolo de um conflito maior: a relação entre a tradição e a modernidade. Ou ainda, a necessidade de a nova geração seguir caminhos próprios, para além de sua origem. Em Clarisse, a protagonista precisa jogar o corpo natimorto de seu pai nas águas cálidas de uma piscina. Agora, o pescador de O barco deve deixar o conforto de sua casa e perder-se nas águas do mar.

É preciso lembrar que, para romper, é preciso romper com tudo, como já diria Gertrud.

O barco é um filme muito interessante, que corrobora o caminho fértil do atual cinema cearense, e em especial o árduo e solitário caminho trilhado por Petrus Cariry, que realiza seu quarto longa-metragem, comprovando sua coerência e sobriedade.


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