Anatomia das coisas encalhadas


Anatomia das coisas encalhadas

O que me fascina nesse maravilhoso espetáculo de Sílvia Moura é a sua frontalidade. É o desejo de se colocar (corpo e alma) frontalmente nesse espetáculo. E que isso só pode se dar na presença de (e para) um público. Não conheço muito de dança, mas penso que “Anatomia”, mais que um espetáculo de dança (ou teatro) (ou performance) é um espetáculo de arte. Pois acredito que o papel da arte é explorar as fronteiras entre a criação e a vida. Para Sílvia Moura, viver é criar, e criar é viver. Claro, são movimentos distintos, mas, orgânicos, se alimentam. Uma arte que parte da vida, que ressignifica a vida em arte, e, após esse “reprocessamento”, devolve a arte para a vida. Cada espectador vai para sua casa com alguns desses “objetos colecionados” por Sílvia. Isso só acontece porque, o tempo todo, Sílvia se coloca diante do público de maneira frontal. É essa encenação frontal que dá à peça a sua verdade!

Colecionar objetos. Colecionar o “lixo” produzido pela indústria consumista de produtos (caixas, palitos de picolé, etc.). Transformar o lixo não em algo útil para ser novamente consumido (a indústria da reciclagem, a paranoia ecológica). Transformar o lixo simplesmente em objeto de comtemplação. Esse é o gesto político dessa peça.

A princípio poderíamos pensar que “colecionar objetos descartáveis” seria uma atitude infantil da artista. Nada disso! É um ato político! A peça começa quando a artista conta uma história que sua mãe a ensinou a se desprender das coisas, a partilhar. Em seguida, ela fala do seu desejo de guardar coisas sem propósito. Esse prólogo é uma declaração de princípios da arte de Moura. É entre o desejo de “(com)partilhar” e o de “guardar” (conservar, manter) que todo o espetáculo se estrutura. E que fala dessa relação entre arte e vida. Pois logo depois um tema que Sílvia irá desenvolver é o do início e do fim. Sempre é preciso recomeçar. Mas com a consciência da proximidade do fim.

Quando finalmente, lá pelo final da peça, Sílvia finalmente nos mostra “os movimentos que ela colecionou ao longo de mais de trinta anos”, o público – o mais heterogêneo possível – tem de fato condições de entender o que significa a construção do processo artístico para o artista. “Esses movimentos sou eu”. Não dura mais de 5 minutos a breve exposição de pequenos trechos de movimentos de diversos espetáculos. Ali o público que veio acompanhando toda essa encenação frontal pode entender qual é o papel do artista. Ela se coloca como uma gari. Como uma catadora que vem sistematicamente coletando, sem pressa, o que as pessoas jogam fora. Coleta coisas “sem utilidade”. O que fica disso?

De encenação humilde, sem efeitos pirotécnicos (ninguém sai voando pelo palco sobre cabos de aço, etc.), “Anatomia das Coisas Encalhadas” não está preocupado em “mostrar-se belo”. Está menos preocupado com a beleza do que com a verdade, ou melhor, menos com as aparências e mais com a essência. Por meio de sua ética frontal, fala sobre a arte e sobre a vida. Me lembrou – de outras formas – o teatro pobre de Grotowski, nesse pacto transformador entre o artista e o público. Um espetáculo sobre o encontro.

Na saída da apresentação, há poucos metros dali, uma cantora paulista começava a se apresentar num grande palco na lotada Praça José de Alencar, num show anunciado por toda a mídia local. Muita luz e fumaça, mas o que pulsava no corpo dessa cantora, a partir da sua voz? Meu Deus, quanta distância!

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