Mãe e Filha

Mãe e Filha
de Petrus Cariry
Cine Ceará 12/06 19hs




(do luto ao luto)

Quis o destino que a primeira exibição pública do segundo longa de Petrus Cariry acontecesse no dia dos namorados. Uma espécie de ironia, pois os festejos de uma data cuja principal razão de ser é o comércio (os presentes, os restaurantes, etc) se afastam do espírito do filme, uma sóbria elegia fúnebre. Já falamos aqui sobre o notável longa de estreia de Petrus – O Grão – e a condição singular do realizador no cenário do cinema de Fortaleza. Em Mãe e Filha não consigo deixar de refletir sobre essa mesma situação, pensando em que medidas esse segundo filme é um aprofundamento, uma radicalização do anterior, apontando para um caminho de cinema muito coerente e comovente. Entre herdeiro de uma tradição familiar e integrante do “novíssimo cinema fortalezense”, Petrus parece fazer uma declaração de princípios em defesa de um caminho próprio, negando sua filiação a um ou outro extremo.

Mãe e Filha é uma enorme ilha dentro do cinema brasileiro, afastando-se seja de um cinema mais narrativo, ligado ao grande público, seja de afastando dos fetiches do jovem cinema contemporâneo. Em contraste com o clima geral de exaltação dos feitos sociais da Era Lula e diante das perspectivas de um Ceará em desenvolvimento, Petrus realiza um dos filmes mais sombrios do cinema brasileiro recente. É como se Petrus fosse assombrado por fantasmas que ele próprio não viveu. Seu destino: a opção pela solidão e pelo luto. Do luto ao luto.

Mas o que é o filme? Mãe e Filha possui um fiapo de narrativa: uma mulher que volta ao interior do Ceará para visitar sua mãe e enterrar seu filho (neto desta). Com isso, o filme é um longo e doloroso cortejo fúnebre, travessia de difícil pertencimento. A avó vive absorta pelos fantasmas de um passado, como um espelho da própria condição da cidade – Cococi, uma “cidade fantasma”, que Petrus já havia filmado no curta Dos Restos e Das Solidões. Na cidade não parece haver perspectiva de futuro além da morte: os enquadramentos são centrípetas, claustrofóbicos, a luz sombria, fora da luminosidade tradicional das representações do sertão.

De fato, esse é um dos elementos que afasta Mãe e Filha de O Grão: enquanto este ainda era voltado para uma representação mais tradicional do universo do interior nordestino, em Mãe e Filha o sertão surge a partir de uma iconografia peculiar e de um olhar que foge ao realismo. Momentos de câmera lenta tal qual a videoarte mineira, vaqueiros que se sentam à mesa como se fossem os parentes de Tio Boonmee, cortes abruptos de imagem e som, vagalumes que iluminam o breu, grandes planos gerais filmados com lentes grandes angulares, uma referência pictórica sofisticada, lembrando os quadros do barroco ou do renascimento do Norte. Um momento especial se destaca nessa relação entre a construção de uma iconografia plástica e as novas representações do sertão: é quando Petrus corta para um quadro de Ofélia, uma pintura pré-rafaelita, de John Millais. É como se Ofélia fosse uma espécie de alter ego da posição do diretor. Em meados do século XIX, os pré-rafaelitas se opunham aos avanços dos pós-impressionistas e optavam por uma arte falsamente acadêmica, por um sensualismo de suspensão do tempo e do espaço, numa opção consciente por um comovente anacronismo. Uma religiosidade sensual, luminosa. Ofélia morre na dor e na loucura mergulhando num lago, mas sua morte não é como Mouchette de Bresson. Há uma “suntuosidade simples” mas nada franciscana e uma iluminação. De qualquer forma, o que quero dizer é que os pré-rafaelitas eram uma ilha.

Tudo é filmado com grande delicadeza, como um cumprimento respeitoso em acompanhamento a esse ritual fúnebre, observando a passagem do tempo e a reinstalação do espectador e da protagonista nesse lugar-nenhum. Petrus observa de maneira respeitosa sua herança mas se interessa muito mais em perscrutar a estada dessa mulher nessa casa a que ela não pertence mais do que sua saída para outro mundo. Sabe que aquele mundo não tem mais como continuar mas não sabe o que fazer sem ele. Mãe e Filha é fatalista mas nesse entremeio Petrus parece encantado com as possibilidades da linguagem do cinema, um longo gesto de adeus, em ritmo de adagio. É admirável que Petrus o realize em Fortaleza em 2011. A autoconsciência desse pomposo anacronismo torna Mãe e Filha um adagio fúnebre que nos faz lembrar que o cinema pode ser a arte do encontro, da amizade ou mesmo do embate, da luta, mas também pode ser simplesmente um gesto de luto, silêncio, sombras... e solidão.

Comentários

Que texto de pessoa intelectual, meu Deus! E o melhor que li acerca da obra. Parabéns! Beijos!
Valéria disse…
Oi, Marcelo! Sabe, quando vi essa pintura, não soube identificá-la, mas confesso que ela me incomodou e ainda me incomoda,como se fosse parte de uma cultura estrangeira, dominadora sobre a nossa, invadindo uma busca por identidade... é bela, mas não faz parte da história (assim como a estampa do rosto da Marilyn Monroe rs).
Cinecasulófilo disse…
oi valeria. gostei exatamente disso, pq nessa hora o filme deixa claro que sua ambição não é a representação realista do sertão. mais do que o neo-realismo, ele é de uma iconografia neoexpressionista, neobarroca. mas claramente nao realista. e, claro, para mim, é uma enorme declaração de princípios: ophelia c´est moi!!! bjs ik
Anônimo disse…
Desde ontem a noite eu estava atrás de textos sobre o filme e vim parar aqui.
Belíssimo texto!! Vi o filme ontem no festival de cinema de Brasília, ainda estou muito impactada pelo poder sensorial do filme, o rigor do diretor, fotografia e etc. O Petrus Cariry fotografou, dirigiu e produziu o filme. CLAP, CLAP. Vcs cearenses estão de parabéns, o filme é uma pequena obra-prima, tomara que tenha um lançamento a altura, parabéns pelo blog, estou lendo seus textos.

Maria Júlia

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