Os contracampos de Não Amarás

Um dos recursos mais típicos do cinema é o contracampo. Diria que é o típico recurso que faz do cinema uma linguagem autônoma, isto é, um recurso específico do cinematográfico. O contracampo é um recurso técnico do olhar. Plano A (campo), alguém olha. Corta. Plano B, o objeto do olhar de quem olha (o contracampo).

De recurso técnico que afirma uma gramática, o contracampo pode ser pensado como instrumento de autonomia não só do cinema mas essencialmente do espectador. No exemplo citado, o plano B funciona como ponto de vista não só do personagem mas também do espectador, que olha com a personagem. Espectador e personagem se fundem, como parte de um processo de identificação, que se associa com o olhar. Além disso, o plano B é um plano do outro: o contracampo é o que permite que quem olha veja o mundo, ou seja, é o que projeta o desejo de quem olha para fora de si, é o seu contato com o mundo e com o outro. A integração entre o campo e o contracampo é a possibilidade de contágio entre o eu e o mundo.

Acredito que nenhum filme tratou de forma tão humana o contracampo como Não Amarás, de Kieslowski. É um filme sobre um adolescente que olha a mulher de seus sonhos pela janela de seu quarto. Parece Janela Indiscreta. Mas se Hitchcock pensava o contracampo (o olhar) como uma epistemologia, para Kieslowski o contracampo é uma ontologia. Ora, quando olhamos, vemos o outro; portanto, somos livres. Mas essa liberdade muitas vezes dói. A intenção de Kieslowski é apontar para a inevitável dor dessa liberdade que ainda assim deve ser buscada.

Não Amarás ainda revela um outro contracampo, desta vez referente à própria estrutura narrativa do filme. Há uma quebra narrativa que divide o filme em duas metades: na primeira, o menino olha para a mulher; na segunda, a mulher que é observada pelo menino passa a observá-lo. O “contracampo” se torna “campo”, e vice-versa. Quando, através de uma circunstância do destino, essa mulher muda de posição, ela passa a perceber as coisas de uma outra maneira: ora, quando vemos o outro, vemo-lo a partir de nossos próprios olhos, isto é, não deixamos de ver segundo nós mesmos. Vendo o outro, estamos vendo nosso próprio eu. Campo e contracampo se tornam uma coisa só. Claro, pois o plano B só faz sentido se antes há um plano A, já que, por meio da montagem, o espectador faz a associação entre o sujeito e o objeto do olhar.

Esse conceito tem a sua síntese numa espécie de clímax narrativo: a mulher vai até o apartamento do menino e olha pela janela, assim como ele o fazia anteriormente (na verdade é um pouco mais complicado do que isso, pois o menino olha através de uma luneta, isto é, a partir de uma lente, o que nos remete à própria natureza do processo cinematográfico de captura de uma imagem, e Kieslowski trabalha esse fato apontando para uma mediação ou uma perversão do menino de espiar uma vida outra mas não vou entrar nisso aqui). Ela não olha para ele do apartamento dela, invertendo (ou retribuindo) esse olhar. Agora, ela olha pela lente dele, ela passa a ser o próprio olhar desse menino.

O amor (o filme se chama na verdade “uma pequena história sobre o amor”) na verdade é isso: não apenas uma retribuição do olhar, mas a possibilidade de olhar junto. Amor que pode ser pensado também como o amor de um diretor por um filme, ou mesmo de um espectador por um filme. Quando a mulher olha da janela do quarto do menino para o apartamento dela, pelos recursos do campo-contracampo, também nós os espectadores olhamos junto com a mulher.

Nesse último contracampo, vemos uma imagem não-realista. Vemos uma cena que de fato não está acontecendo, mas é simplesmente a projeção de um desejo dessa mulher: a de ter alguém que a abrace. Ou seja, uma projeção, um desejo, uma esperança, um sonho.

É somente nesse ato de conjunção final – a possibilidade não só de “retribuir o olhar” mas de “olhar junto” – que o sonho se revela possível. Em Não Amarás, o contracampo sinaliza a vitória da imaginação contra o mundo, é sinal de esperança por uma liberdade possível.

Comentários

Anônimo disse…
O meu contracampo é você.
Anônimo disse…
escreve mais aula pra gente!!!!
ai como eh bom ler os seu blog! e qdo fala do kies entao...a gente ateh chora!!!
Rudá Lemos disse…
Que texto brilhante! Me sinto feliz de poder ler isso sem pagar nada.
Cinecasulófilo disse…
obrigado às duas "anônimas" e ao Rudá!!!
Carolinne Vieira disse…
Acho que foi o texto mais delicado e mais preciso que li sobre um filme do Kieslowski...
Murilo disse…
http://desenredos.dominiotemporario.com/doc/14-Ensaio-Ikeda-NaoAmaras.pdf
Murilo disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Murilo disse…


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