Gomorra
Gomorra
De Matteo Garrone
Estação Botafogo 1 qui 21hs
** ½
Para variar, não vou conseguir escrever nada mais elaborado sobre Gomorra. Minha sina, e a sina desse blog é essa: a de nunca conseguir escrever como gostaria. Aliás, uma sina da vida: a impossibilidade de se fazer as coisas com um mínimo de calma, com maior qualidade, com mais coerência. Mas nisso minto, volto atrás: é exatamente assim que esse blog afirma a sua coerência, ainda que essa coerência seja atabalhoada, que seja implícita – e não explícita – ainda que ela não seja formal e elaborada formalmente, ainda que ela aparentemente (mas só aparentemente) entre em conflito com a própria forma como faço os meus próprios filmes caseiros, com um bom tempo de maturação e com muito critério para separar com muito cuidado o que tenho apreço.
Mas enfim este texto corrido é para falar o que acho de Gomorra, e não para tentar me explicar porque esse texto não é como gostaria que fosse, ou como minha vida não é como gostaria que fosse, porque, ainda assim, ele (o texto) e ela (minha vida) o são, e o são dessa forma, e são de uma forma bastante coerente.
Bom, o fato é que, ainda que o filme demore bastante a engrenar, e ainda que eu não tivesse a menor expectativa, e ainda que eu tenha me aborrecido ao entrar no Estação (infelizmente cada vez mais eu saúdo a concorrência do Arteplex...), Gomorra é um filme interessante, que vale a pena ser visto. Gomorra me surpreendeu porque ao invés do retrato de sempre das mazelas da máfia, etc, o filme propõe uma radiografia bastante madura e contundente sobre a deterioração de um estado de coisas, e daí que o filme é muito mais que um retrato sobre a máfia, mas sim sobre a caótica situação da Itália como um todo. O filme tem um olhar para essa estrutura social italiana deteriorada, já expressa a partir de um uso expressivo das locações, em locais abandonados, caindo aos pedaços, etc. Tem um momento muito significativo em que, após um extermínio num quartinho, a câmera, em plano-sequência, acompanha o único sobrevivente que sai desse local subterrâneo e sobe uma pequena ladeira onde se integra com o caos urbano (o trânsito e a cidade).
Caos italiano, filme kafkiano, em que o olhar para as instituições se dá a partir da relação entre as pessoas, em como esse caos se reflete no dia-a-dia das relações pessoais, em como isso se repercute nos “negócios” e na família, nas futuras gerações sem perspectiva, mas sem vitimização ou discurso da miséria (não é Ken Loach, por exemplo). Com isso, a Itália de Gomorra nos lembra do Brasil, seja pela influência do submundo, seja pelo despreparo das instituições oficiais em reparar essas distorções absurdas.
Mas se nos lembra do Brasil, Gomorra é tudo o que Cidade de Deus (ou mesmo Tropa de Elite) não é. Pois o filme de Matteo Garrone, ao transpor o dia-a-dia desse submundo através da adaptação de um livro baseado em fatos reais para o mundo de regras próprias da ficção, não busca primeiramente a promoção do espetáculo da barbárie, ou em seduzir o espectador pela agilidade das cenas de ação. Gomorra retrata toda essa realidade através de um distanciamento, a partir de narrativas paralelas mas que não necessariamente se encontram (como nos jogos formalistas de roteiro como os filmes de Inarritu e companhia). Esse distanciamento faz com que o espectador perceba claramente que o filme assume uma postura crítica em relação a esse estado de coisas, e não que incite o espectador a mergulhar nos maravilhamentos sedutores do cinema de gênero. Isso faz com que Gomorra seja um filme seco, que tenha um alcance menos amplo em termos de público mas se torne um retrato contundente e que eticamente não seja tosco como a tão festejada dupla de brasileiros.
Gomorra faz isso através de um cinema arrojado, de planos alongados, com câmera na mão e uma estética que dialoga com um sentido de urgência caro ao documentário, mas sem os cacoetes dos filmes de ficção que tentam a todo o custo emular os recursos documentais como um fetiche (exemplo máximo é o terrível Domingo Sangrento, de Paul Greengrass). O elenco em atuações uniformes, intensas, sem espalhafatos como todo o filme. Cinema político em sua essência, mas sem panfletarismos, lembra um pouco Salvatore Giuliano na sua urgência, na sua vontade de cinema, na sua precisão. E impressiona por ser uma radiografia madura de uma Itália desorganizada. Não é só o Brasil que é “cronicamente inviável”.
De Matteo Garrone
Estação Botafogo 1 qui 21hs
** ½
Para variar, não vou conseguir escrever nada mais elaborado sobre Gomorra. Minha sina, e a sina desse blog é essa: a de nunca conseguir escrever como gostaria. Aliás, uma sina da vida: a impossibilidade de se fazer as coisas com um mínimo de calma, com maior qualidade, com mais coerência. Mas nisso minto, volto atrás: é exatamente assim que esse blog afirma a sua coerência, ainda que essa coerência seja atabalhoada, que seja implícita – e não explícita – ainda que ela não seja formal e elaborada formalmente, ainda que ela aparentemente (mas só aparentemente) entre em conflito com a própria forma como faço os meus próprios filmes caseiros, com um bom tempo de maturação e com muito critério para separar com muito cuidado o que tenho apreço.
Mas enfim este texto corrido é para falar o que acho de Gomorra, e não para tentar me explicar porque esse texto não é como gostaria que fosse, ou como minha vida não é como gostaria que fosse, porque, ainda assim, ele (o texto) e ela (minha vida) o são, e o são dessa forma, e são de uma forma bastante coerente.
Bom, o fato é que, ainda que o filme demore bastante a engrenar, e ainda que eu não tivesse a menor expectativa, e ainda que eu tenha me aborrecido ao entrar no Estação (infelizmente cada vez mais eu saúdo a concorrência do Arteplex...), Gomorra é um filme interessante, que vale a pena ser visto. Gomorra me surpreendeu porque ao invés do retrato de sempre das mazelas da máfia, etc, o filme propõe uma radiografia bastante madura e contundente sobre a deterioração de um estado de coisas, e daí que o filme é muito mais que um retrato sobre a máfia, mas sim sobre a caótica situação da Itália como um todo. O filme tem um olhar para essa estrutura social italiana deteriorada, já expressa a partir de um uso expressivo das locações, em locais abandonados, caindo aos pedaços, etc. Tem um momento muito significativo em que, após um extermínio num quartinho, a câmera, em plano-sequência, acompanha o único sobrevivente que sai desse local subterrâneo e sobe uma pequena ladeira onde se integra com o caos urbano (o trânsito e a cidade).
Caos italiano, filme kafkiano, em que o olhar para as instituições se dá a partir da relação entre as pessoas, em como esse caos se reflete no dia-a-dia das relações pessoais, em como isso se repercute nos “negócios” e na família, nas futuras gerações sem perspectiva, mas sem vitimização ou discurso da miséria (não é Ken Loach, por exemplo). Com isso, a Itália de Gomorra nos lembra do Brasil, seja pela influência do submundo, seja pelo despreparo das instituições oficiais em reparar essas distorções absurdas.
Mas se nos lembra do Brasil, Gomorra é tudo o que Cidade de Deus (ou mesmo Tropa de Elite) não é. Pois o filme de Matteo Garrone, ao transpor o dia-a-dia desse submundo através da adaptação de um livro baseado em fatos reais para o mundo de regras próprias da ficção, não busca primeiramente a promoção do espetáculo da barbárie, ou em seduzir o espectador pela agilidade das cenas de ação. Gomorra retrata toda essa realidade através de um distanciamento, a partir de narrativas paralelas mas que não necessariamente se encontram (como nos jogos formalistas de roteiro como os filmes de Inarritu e companhia). Esse distanciamento faz com que o espectador perceba claramente que o filme assume uma postura crítica em relação a esse estado de coisas, e não que incite o espectador a mergulhar nos maravilhamentos sedutores do cinema de gênero. Isso faz com que Gomorra seja um filme seco, que tenha um alcance menos amplo em termos de público mas se torne um retrato contundente e que eticamente não seja tosco como a tão festejada dupla de brasileiros.
Gomorra faz isso através de um cinema arrojado, de planos alongados, com câmera na mão e uma estética que dialoga com um sentido de urgência caro ao documentário, mas sem os cacoetes dos filmes de ficção que tentam a todo o custo emular os recursos documentais como um fetiche (exemplo máximo é o terrível Domingo Sangrento, de Paul Greengrass). O elenco em atuações uniformes, intensas, sem espalhafatos como todo o filme. Cinema político em sua essência, mas sem panfletarismos, lembra um pouco Salvatore Giuliano na sua urgência, na sua vontade de cinema, na sua precisão. E impressiona por ser uma radiografia madura de uma Itália desorganizada. Não é só o Brasil que é “cronicamente inviável”.
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