Cartas do absurdo

Cartas do absurdo

de Gabraz




     
Cartas do absurdo (2025), de Gabraz, começa com o fogo. O fogo nos remete à violência mas também à presença dos espíritos das nações indígenas potiguaras. O texto baseia-se na recém descoberta de cartas escritas em tupi, datadas do século 17. São documentos importantes porque são um dos raros registros que lidam com a história do Brasil não do lado dos vencedores,mas dos vencidos – os povos indígenas. Gabraz utiliza essas cartas como ponto de partida para propor uma leitura do contato da civilização com os povos originários brasileiros, mas seu filme propõe essa operação não como um manual explicativo nos moldes de uma análise sociológica ou política de cartilha. Ao contrário, o filme propõe investigar, de forma poética, as implicações desse contato, em que a violência é atravessada pela própria formação da imagem.

A carta relata as opressões sofridas pelos indígenas durante a mineração. Em um gesto criativo, Gabraz promove um arco temporal, relacionando-o com os recentes desequilíbrios ambientais no estado de Minas Gerais, no rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, em 2015 e 2019, que mataram mais de 300 pessoas e afetaram mais de 1000 famílias. A multiartista Sara não tem nome atua em uma performance. Em um dos planos, a cobiça despertada pela terra ofusca Narciso, que se olha por um espelho retorcido. Os sons contribuem para a construção de uma sugestiva atmosfera sonora que invade o filme em uma mistura de delírio e sonho.

Em um trecho da carta, o indígena afirma que, ao acordar, viu os grandes barcos se aproximando do cais. E é justamente este o último movimento do filme: um longuíssimo plano sequência de 28 minutos, cujo ponto de vista é visto pela proa da embarcação. Os olhos do comandante dominam a embarcação, que se remete à época dos descobrimentos, quando Portugal chegou ao continente sul-americano, símbolo da dominação colonial. Esse plano poderia ser um dos travelogues dos irmãos Lumière mas visto pelo prisma do cinema contemporâneo, à moda de James Benning. No entanto, podemos fazer uma outra leitura: esse é o contracampo da imagem do indígena, no primeiro plano do filme. É a imagem do colonizador, chegando à terra firme. E, com ele, a câmera de filmar. A chegada da civilização coincide com a entrada do próprio cinema. O cinema também é um aparelho civilizatório da cultura branca.

 

* texto originalmente publicado em inglês no site do Arsenal / Forum Expanded /Berlinale em fevereiro/2025. Disponível aqui .

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