IL BUCO

 IL BUCO

Michelangelo Frammartino

 


Il buco é um dos mais importantes filmes italianos dos últimos anos, e joga um pouco de luz para a notável obra de Michelangelo Frammartino. Num momento em que o cinema e a sociedade parecem cada vez mais apontar para estratégias de choque (visto os últimos vencedores de grandes festivais como Cannes, Berlim e Veneza), Il buco trilha o caminho (supostamente anacrônico) da sugestão e da delicadeza. Ainda: num contexto em que a Itália é vista por muitos como um país atrasado, que precisa crescer e se modernizar aos moldes dos rumos dos líderes da União Europeia, Il buco parece não se interessar pelo caminho da “Itália industrial do Norte”, mas, ao contrário, promove um mergulho profundo, isto é, nas profundezas, de uma Itália considerada antiga, arcaica, anacrônica. Uma Itália mergulhada nas suas raízes ancestrais – e, para a nossa surpresa, percebemos que essa Itália não é apenas ligada ao passado ou às ruínas dos templos voltados para a mera visitação fotográfica das selfies dos turistas, mas que permanece resistindo como uma Itália de hoje, ainda que despercebida. Essa me parece ser a principal contribuição do cinema de Frammartino – a de sinalizar, com sutileza, uma sociedade ( e também um cinema!) que sobrevivem, mesmo diante da avalanche do capitalismo contemporâneo global.

A princípio, o filme se apresenta como um documentário que registra a expedição de homens que exploram um buraco de enormes proporções, na região da Calábria, sul da Itália. No entanto, logo percebemos que o filme pouco guarda a intenção de documentar, no sentido que não busca a informação ou o documento. Il buco está mais próximo de um ensaio que transcreve, por meios poéticos, o desvelamento de modos de ser. Isto fica claro quando percebemos que o tal buraco que intitula o filme só irá aparecer em tela com quase trinta minutos de filme. Antes, o filme passeia, como se pintasse em óleo – como as paisagens de Poussin, na fase final de sua vida, no séc. XVII –, e sem nenhuma pressa ou necessidade de narrativa, drama, suspense, conflito, etc., pelo cotidiano de uma sociedade rural, quase como se totalmente apartada dos grandes elementos da chamada civilização.

Se o cinema de Frammartino parece uma ilha no cinema italiano de hoje, é preciso perceber também as suas próprias raízes. Esse discreto fascínio por uma Itália profunda, que transforma a paisagem e os trabalhadores/camponeses em grandes protagonistas, dialoga diretamente com os filmes Straub-Huillet, longamente trabalhados em diversos recantos da região. No entanto, a mise en scène de Frammartino é muito diferente da de Straub-Huillet: seu desejo forte de paisagem e de pessoas comuns remetem, em última instância, à escola do neorrealismo italiano, mas posteriormente reformada por um mestre que tem recebido pouca atenção: Vittorio de Seta. Il buco é herdeiro dessa tradição do cinema italiano que avança para além do neorrealismo e passa inevitavelmente pelo cinema de de Seta em Bandidos de Orgosolo (1961), e depois vai desembocar no cinema dos Tavianis e do Olmi de A árvore dos tamancos (1978). Mas aqui Frammartino parece seguir um caminho que radicaliza a premissa desses cineastas, quase esvaziando o sentido de drama, conflito e narrativa, e aproximando seu filme de um ensaio visual. Seu filme talvez esteja mais próximo da pintura paisagística do séc. XVII do que dos recursos típicos do cinema moderno.

Uma equipe de desbravadores mergulha nas profundezas do buraco. A dificuldade técnica da expedição (são meandros íngremes) recebe um duplo sentido, quando pensamos que, ao mesmo tempo, a equipe de Frammartino já está lá para acompanhar o caminho dos operários. Mas, por que se mergulha, o que se busca afinal? Ao longo do filme, fica claro que não se está a escavar, não se buscam riquezas minerais ou coisas do tipo. O filme é simplesmente guiado pelo desejo humano dessa curiosidade em desbravar algo desconhecido, e se conectar com um interior profundo, ainda que não surjam explicações. A elegância e o rigor como Frammartino enquadra esse cenário aparentemente opressor confere uma grandeza nobre ao trabalho cotidiano dos operários. Esse mergulho nas profundezas geológicas do ventre terra assume quase uma proporção metafísica/filosófica sobre o próprio sentido da condição humana. Os túneis submersos não revelam diretamente tesouros materiais  escondidos, ou não há nenhum acidente sensacionalista. Mas tampouco a rotina do trabalho é vista como algo duro e massacrante, como nas obras do final dos anos 2000 do chinês Wang Bing. Frammartino promove um mergulho de rara beleza poética, por meio de imagens e sons cuidadosamente orquestrados pelo realizador e sua equipe, mesmo com base no material direto do cotidiano. Há um desejo muito forte (e até mesmo impressionante) de mise en scène por trás desse filme aparentemente documental – e, por isso, Il buco é um filme profundamente cinematográfico. É curioso percebemos que, a uma certa altura, uma pessoa desenha, à mão, um mapa desses túneis. No entanto, a forma delicada como o mapa é desenhado nos aproxima de um processo artístico. Trata-se de um paralelo com o próprio trabalho de Frammartino: realizar uma cartografia daquela região, mas não propriamente no sentido de documentar, mas para apreender um mapa poético, por meio de uma caligrafia artística, daquele lugar. Por trás do que poderia ser tachado como meramente descritivo, Frammartino pinta, com seu pincel numérico, não apenas a geografia física mas os modos de ser de uma região. O tempo e o espaço, matérias-primas do cinema, e também da vida!

Isto posto, me parece que, em alguns momentos, Il buco acaba sendo um prolongamento com menos força de seu filme anterior, a obra-prima As quatro voltas (2010). Em alguns pontos, as relações que Frammartino propõe com o tempo e o espaço me parecem ser menos inventivas, ou que meramente desdobram o filme anterior. Um exemplo típico está na trama do velho ancião que morre numa pequena cabana. Em certo momento do filme, há uma montagem paralela entre os operários nas profundezas do buraco, e os médicos que examinam a doença no corpo do idoso. Os médicos não conseguem mergulhar nas profundezas do organismo como os operários o fazem (uma das leituras possíveis). A morte é inevitável, mas a natureza renasce, transformando-se. De todo modo, o ritmo da montagem paralela entre as duas sequências estimula o espectador a fazer associações diretas entre os movimentos dos dois casos, por meio de um recurso que foge das suas estratégias de maior sutileza e abertura. Ainda assim, Il buco é uma das mais importantes obras do cinema contemporâneo dos últimos anos.

É um privilégio que esse filme seja lançado comercialmente nas salas de cinema brasileiras (onde deve ser visto, para que possa ser melhor apreciado seu tom suntuoso de imagem e som). Parabéns a Zeta Filmes, que tem os mais vigorosos filmes em sua carteira de lançamentos, como Vitalina Varela, de Pedro Costa, entre vários outros.

 

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