ANGRY STREET

ANGRY STREET

IKARI NO MACHI

de Mikio Naruse (1950)

 



Parece que este é um dos quatro filmes que Mikio Naruse dirigiu apenas no ano de 1950. Esse número nos aproxima do ritmo incessante do cinema de estúdio, ainda que japonês. Desse modo, ao final, fica a sensação de que ANGRY STREET é um Naruse menor, cujo roteiro precisaria de um maior lustre para atingir o nível de sofisticação de outros de seus filmes posteriores. Ao mesmo tempo, revela o talento de artesania de Naruse: seu estilo cristalino, de modo que nenhum plano parece apontar exclusivamente para si como índice do “fetichismo do autor” mas que reforça a coesão do todo.

ANGRY STREET deve ser visto entre um conjunto de filmes japoneses do pós-guerra que mostram as difíceis condições econômicas da reconstrução do país, e o preço moral pago por personagens que buscam ascender socialmente a qualquer custo. Dois amigos estudantes praticam golpes em mulheres ingênuas para conseguir dinheiro para pagar a matrícula da universidade e o aluguel do apartamento. Os dois amigos, no entanto, acabam tendo rumos distintos: um deles (Mori, brilhantemente interpretado por Jūkichi Uno) sofre uma crise moral ao encontrar com a irmã de seu amigo, sua antiga namorada, e quer mudar de vida; o outro (Sudo, interpretado por Yasumi Hara), ao contrário, ao conhecer uma nova-rica, quer entrar no submundo do mercado negro e ter o seu próprio negócio, ainda que negligenciando sua família.

No entanto, a narrativa acaba conferindo contornos duros aos dois personagens sem grandes sutilezas, como uma batalha entre o bem e o mal: o drama de Naruse acaba assumindo um aspecto moralizante muitas vezes pouco sutil, como, por exemplo, nos flashbacks sonoros que ficam ressoando na cabeça de Mori após ter reencontrado a irmã de seu amigo (“Você mudou muito!”).

De todo modo, parece que os caminhos trilhados pelos dois amigos representam duas opções distintas no Japão do pós-guerra: Sudo aprofunda seu individualismo influenciado pelo materialismo e pelo pragmatismo norte-americano, enquanto Mori se arrepende e se volta para a família e para os valores mais tradicionais japoneses. É curioso perceber que, se Sudo vivia aplicando golpes em mulheres ingênuas, no final ele foi vítima das armadilhas de uma mulher muito mais ambiciosa. No fundo, a dupla de amigos estudantes se revela ingênua para viver diante dos desafios de um Japão que nem é completamente ocidentalizado nem vive conforme os valores tradicionais do pré-guerra.

A trama fez com que muitos críticos associassem o filme ao cinema noir, mas acho um exagero: ele está bem mais próximo de um drama moral. No entanto, vejo o filme como herdeiro dessa influência do cinema ocidental na cultura japonesa do pós-guerra, não apenas no modo como o pragmatismo materialista destroi os valores da família japonesa (algo muito caro ao cinema de Naruse do pós-guerra, em outros filmes, como, por exemplo, em Inazuma) mas especialmente por uma mise en scène funcional aos moldes de um filme de estúdio B.

De todo modo, o que considero mais interessante nesse filme de Naruse são as filmagens em externas: como se anuncia pelo título, o movimento das ruas de Tóquio, os ambulantes e comerciantes em pequenos quiosques improvisados, ou ainda, a caminhada dos personagens pela periferia da cidade, com um cenário depauperado, algo que me lembra o posterior Cartas de amor (1953), de Kinuyo Tanaka. A habilidade da artesania de Naruse e a precisa direção de atores colocam certo freio na tendência de um melodrama aberto, e se não chegam a salvar totalmente o filme, o tornam mais interessante para as plateias de hoje.

 



obs 1: uma bonita cena do filme revela a transformação interior de Mori, quando ele presta socorro a um homem desconhecido que caiu de sua bicicleta. Gostei tanto dessa cena! É curioso como uma cena que aparentemente poderia ser visto como acessória ou supérflua consegue imprimir tantas nuances aos desafios do Japão do pós-guerra. Gosto muito dessa cena pelo modo como dois meninos (que na verdade provocam o acidente) são filmados e especialmente pelo plano final, com um plano médio fechado da expressão de Mori depois que o homem da bicicleta se vai (ver foto).

obs2: a delicada artesania de Naruse pode ser vista em alguns momentos como esse plano que encerra a sequência. Percebemos que um beijo ocorre fora de quadro pelo modo como se levantam os pés semidescalços da mulher. Ao lado, um maço de dinheiro corrobora o materialismo de Sudo.


* filme visto no Cineclube Araucária. Agradeço os comentários no debate do Cineclube que muito contribuíram para a escrita do presente texto.

Comentários

Postagens mais visitadas