[Fest Aruanda] Ney à flor da pele

[ Cobertura do 16º Fest Aruanda ]


NEY À FLOR DA PELE

de Felipe Nepomuceno




O maior mérito de Ney à flor da pele é sua aparente simplicidade. O que fazer diante de um ídolo? As opções de Nepomuceno buscam mergulhar o espectador no universo artístico do músico, evitando ao máximo as informações biográficas. Ainda que o filme tenha um desejo de percorrer uma trajetória, ele escapa do panorama biográfico totalizante para mergulhar em deriva por fragmentos da carreira artística de Ney. Assim, Nepomuceno optou por utilizar as músicas na íntegra, como se apresentasse o filme como um grande show, entrecruzado com alguns depoimentos de Ney sobre sua vida e obra. Esse filme-de-arquivo se baseia, portanto, num certo minimalismo, para dar voz ao intérprete, que se expressa primordialmente por sua obra.

Mas, no caso de Ney, vida e obra se fundem, já que o que está em jogo não é apenas sua contribuição musical, que já é enorme, mas os modos de ser, uma vez que seus comportamentos propõem uma ideia de liberdade, de que podemos ser nós mesmos. Assim, é curiosa a opção de Nepomuceno em abrir seu filme com cenas de confronto entre a polícia e os jovens em plena ditadura militar ao som de Ney cantando Ave Maria, repertório até certo ponto atípico da carreira do intérprete profano. Mais do que contextualização histórica, que mostra os desafios da carreira inicial de Ney e sua postura libertária em plena ditadura, contribui para trazer o filme para o momento de hoje, de direta repressão ao artista fora das convenções. É possível fazer um paralelo entre essa sequência inicial e outra quase ao final do filme, em que Ney canta para jovens mergulhados na piscina do Parque Laje, quase aos moldes de uma apresentação artística de Oiticica. Essa bela sequência nos aponta para a atualidade e a juventude de Ney, quando ele completa neste 2021 seu aniversário de 80 anos. Nesse nosso mundo de cada vez mais velozes transformações, em que a história é muitas vezes considerada sinônimo de um anacronismo ultrapassado, é reconfortante ver como Ney consegue irradiar sua energia para a juventude de hoje, e é belo o gesto de terminar o filme propondo esse mesmo diálogo.

Apesar de certa simplicidade, a elegância do filme de Nepomuceno é perceber que não é feito apenas de som mas de imagens. A contribuição artística de Ney se dá no encontro entre sua trajetória musical e seus padrões de comportamento, sua produção de presença no palco, ou ainda, um claro aspecto de performatividade. Eis a pele do título: a proposta de arte que reúne criação e vida, obra que se torna corpo pela sua presença. Assim, um conjunto diverso de apresentações do artista comprova seu percurso por diversas questões, trafegando do experimentalismo psicodélico dos Secos e Molhados, ao intimismo existencial de mestres da música brasileira (como Cartola) até as questões políticas de seu tempo (Tem gente com fome – a propósito, infelizmente extremamente atual).

Ao mesmo tempo, é preciso que as coisas mudem para que elas continuem como são. Se o filme possui um desejo de história ou de trajetória, ele reside especialmente em um percurso gradual mas cada vez mais intenso do artista em busca de uma certa depuração ou despojamento. O Ney dos Secos e Molhados vai aos poucos abdicando da máscara carregada e dos adereços espalhafatosos para aparecer ao final quase nu. “Não preciso mais me esconder, estou pronto para enfrentar o desafio de ser eu mesmo”.

Como um típico filme-de-arquivo, Ney à flor da pele é baseado em bancos de imagens de diferentes qualidades. Ao ver o filme na enorme tela do Cinépolis do Shopping Manaíra, ficam exacerbadas as precariedades das imagens dos anos 1970, bastante pixeladas, como se estivéssemos vendo um vídeo do youtube. É curioso pensar como hoje, com a naturalização das imagens precárias das redes sociais, é possível que o espectador não se sinta tão incomodado diante dessas imagens cuja projeção numa sala de cinema seria algo impensável anos atrás. Ao mesmo tempo, à medida que o filme avança e que Ney se torna mais velho, as imagens mais recentes aparecem em melhor definição, até estourar num vibrante HDFull. As variações de textura das imagens apresentadas no filme combinadas com um discurso sobre a passagem do tempo e o envelhecimento mereceriam uma reflexão mais aprofundada, e considero um dos pontos mais interessantes do filme. À medida que Ney vai envelhecendo no filme e ao mesmo depurando seu corpo, as imagens de si surgem, em movimento contrário, cada vez mais jovens. O certo desejo de cronologia do filme reforça essa sensação estranhamente contraditória.

Há os que possam considerar o filme de Nepomuceno como um grande clipe, com uma montagem rápida e descuidada. Mas considero que o grande mérito do filme está justamente em sua aparente despretensão, em deixar que o tempo escorra no plano, estimulando que o espectador se conecte com a energia performática e sonora do artista que emana de suas próprias obras. Há uma sabedoria nas opções discretas de Nepomuceno, que talvez venham de sua larga experiência dirigindo programas de televisão, mas que, ao mesmo tempo, revelam um realizador sóbrio no uso da linguagem-tempo. Tanto por isso, os momentos em que o diretor resolve tentar artifícios de invenção da montagem, por exemplo, no trecho sobre A Rosa de Hiroshima, em que busca-se uma ponte com outras trajetórias, como as imagens de Claudia Andujar, sinto serem os momentos menos potentes do filme, pela dificuldade de a montagem estabelecer relações de voo, mas, em vez disso, acabam soando como mera relação didática de ancoragem.

Talvez minha análise tão positiva sobre o filme esteja influenciada pelo fato de eu ter visto o filme numa circunstância excepcional: uma projeção em sala de cinema, no encerramento de um festival de cinema com casa lotada, com a presença do próprio Ney, com as pessoas cantando as músicas e aplaudindo em cena aberta. Essa recepção me fez pensar sobre a importância das sessões coletivas. Essa sessão, certamente inesquecível e emocionante, só foi possível por ser numa sala de cinema, num festival de cinema. Se o leitor travar contato com esse filme por meio do celular na poltrona de sua casa, por certo verá um outro filme. Aquela sessão única e irrepetível de Ney à flor da pele no encerramento do 16º Fest Aruanda foi, nas várias acepções da palavra, um verdadeiro show – o que nos mostra a importância da sala de cinema como relação de espectatorialidade. E, no momento em que estamos vivendo, um espetáculo não apenas sobre a trajetória de um notável artista mas sobre a importância da arte como um farol que nos ilumina e revigora para enfrentar os desafios do hoje.

 


Comentários

Postagens mais visitadas