[Fest Aruanda] Miami Cuba

[ Cobertura do 16º Fest Aruanda ] 


 MIAMI CUBA

de Caroline Oliveira



 

Apesar do título, Miami Cuba (prefiro Miami-Cuba) é um filme brasileiríssimo: a proposta da diretora Caroline Oliveira é realizar um inventário afetivo sobre sua cidade-natal, João Pessoa. Para tanto, o título toma como base a coexistência de duas cidades quase que diametralmente opostas, como uma típica cidade partida: de um lado, a cidade Miami, em arranha-céus verticalizados e voltada para o turismo de veraneio, especialmente no bairro Tambaú; de outro, a cidade Cuba, em torno do Centro histórico, regida por uma vida comunitária de maior apelo coletivo.

Desde o início fica clara a opção da diretora por um tipo de cidade: a cidade-Cuba. De fato, o projeto do filme começou como uma investigação dos modos de ser de moradores de um edifício-ícone do Centro da cidade: o “Edifício 18andar”, um dos raros residenciais que sobrevivem nos cada vez mais comerciais centros urbanos. Talvez o filme pudesse ficar com uma cara de Edifício Master, o já clássico filme de Eduardo Coutinho que toma como base um edifício para refletir sobre seus anônimos personagens. A realizadora decidiu alugar um apartamento no 18andar para melhor conhecer os moradores e estruturar o filme.

 No entanto, Oliveira tomou uma decisão que considero o mais belo gesto de todo o processo do filme. Em vez de se prender ao apartamento e ao edifício como âncora, simplesmente o utilizou como ponto de partida, e desceu do prédio e começou a caminhar pelas ruas do Centro. Os primeiros planos do filme mostram a oportunidade desse gesto: a própria realizadora caminha pelo Centro da cidade, e a câmera a segue. Ao abandonar o prédio, Carol abraçou a cidade e encontrou um caminho para o filme.

 Com isso, Miami-Cuba se revela uma cartografia afetiva da cidade de João Pessoa. Oliveira não está preocupada com os marcos históricos, os processos econômicos, a macropolítica. Em vez disso, prefere caminhar a pé e promover encontros com seus moradores, muitos deles anônimos, ou, se são conhecidos, são mais em contexto local, como artistas de rua e da cultura popular, fora dos grandes holofotes midiáticos. Com isso, Oliveira aponta para uma vida comunitária, um modo de reconhecimento de identidades para além das marcas da cultura globalizante. Desse modo, Miami-Cuba é um prato cheio para aqueles que estudam as relações entre o cinema e a cidade.

 Assim, Miami-Cuba abandona todos os apetrechos (esteticismos formalistas, dispositivos, requintes visuais-poéticos, etc.) para se concentrar no que é essencial: a potência dos encontros. Em outro diapasão dos programas de turismo que infestam nossos canais de televisão, Miami-Cuba é o documento de uma cidade que resiste em pulsar para além dos padrões homogeneizantes, e sugere um outro modo de ser. A cidade, portanto, é vista como matéria-viva que pulsa a partir da arte e da cultura, de uma vida comunitária, da “alma encantadora da rua”, como diria João do Rio. Esse é o maior trunfo de Miami-Cuba: evitar os esteticismos elitizantes para mergulhar em deriva pela vida comunitária.

 Isso só foi possível porque a realizadora desceu de sua zona de conforto e se perdeu nas labirínticas ruas de sobe-e-desce do Centro Histórico. Ao mesmo tempo, Oliveira, que possui uma trajetória ligada às artes visuais, insere elementos típicos do documentário contemporâneo: o gosto pelo processo e não pela informação, uma estrutura diarística em primeira pessoa, a opção pelo fragmento e pelo instável/precário em vez do panorama totalizante. De forma sutil, valorizado pelo incrível trabalho de montagem de Amandine Goisbault com a própria realizadora, costurando a mão os fios de um novelo diante de um material bruto de mais de 70 horas, um conjunto de referências, desde a cartografia sentimental de Suely Rolnik à invenção do cotidiano de Michel de Certeau, pode ser lembrado pela abordagem do filme em defesa à errância, em busca de uma sensibilidade do comum, envolta em memórias e práticas consideradas inadequadas, por não terem uma utilidade imediata, relacionadas mais ao viver/experienciar do que ao fazer. Ao ver o filme, me lembrei de imediato do belo livro de Paolo Berenstein Jacques, intitulado “Elogio aos errantes”.

 É interessante como a realizadora se implica na filmagem: natural de João Pessoa mas morando muitos anos em outras cidades, o filme é, de certa forma, “o retorno da filha pródiga”, um reencontro com a cidade-natal por uma nativa que, por circunstâncias da vida, se vê estrangeira em seu próprio lugar. As mudanças da cidade também são mudanças de si, mas não como mero espelho ou reflexo, mas como relação ambígua de trânsitos e travessias. Assim como a cidade se transforma, nos transformamos nós mesmos, mas, num certo momento, é preciso voltar para casa. Antes de simples dispositivo, essa é a premissa que fundamenta o reencontro.

 Talvez Miami-Cuba pese demais as tintas ao basear seu percurso na cidade por uma lógica dicotômica, exagerando os tons para demarcar excessivamente uma dualidade excludente, estigmatizando a cidade-Miami em torno de uma demarcação sem nuances. De todo modo, o filme é repleto de um sentimento de enorme afetividade pela realizadora, visivelmente apaixonada pela cidade. Há os que considerem que as paixões podem fazer cegar as análises dos processos. Por outro lado, as disputas em torno de um projeto de cidade estão todas lá, desde a livraria que resiste no Centro da cidade em vez de se mudar para um shopping até o movimento de resistência das mulheres do Porto do Capim, que invadem a Câmara de Vereadores, num momento típico do cinema-militante. É nítido que a realizadora (o filme) se interessa muito mais pelo lado de cá, e que a Miami do título serve apenas como contraponto excludente que simplesmente reforça a potência do seu argumento, mais do que problema exploratório de pesquisa.

 A realizadora optou por estrear esse filme em casa, com uma emocionante exibição no FestAruanda, em João Pessoa, com casa cheia, com diversos dos personagens presentes na exibição. Um reencontro com as salas de cinema e com a cidade, logo depois dessa pandemia que não passa. Ao mesmo tempo, era estranho ver o nascimento de um filme como esse em certo lugar da cidade – uma sala de multiplex do Shopping Manaíra, local muito mais próximo da cidade-Miami do que de Cuba. A política de um filme não está apenas no filme em si, mas nos gestos em se lançar ao mundo, com que públicos, de que formas. Miami-Cuba é um corpo estranho dentro do maravilhoso e misterioso cinema paraibano, por sua investigação sensível e delicada das fissuras e das disputas de um projeto de cidade. Há no filme um curioso paradoxo: diante de um mundo em ruínas, ele é um retrato-documento de seu tempo, e, ao mesmo tempo, um projeto de utopia, uma cidade-inventada, um desejo de um projeto de cidade que desmorona. Mais que a cidade em si, vemos a cidade-desejo pelos olhos de uma realizadora que se entrega a um projeto de utopia buscando um corpo-a-corpo com a cidade. Vejo assim, por trás do documentário, um desejo de ficção. Ou ainda, a ficção surge implícita como projeto de desejo. A dualidade de Miami-Cuba deve ser vista para além da dicotomia territorial expressa no título mas pelo seu difícil equilíbrio, entre uma parte que é de esperança e de outra parte, despedida.

 


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