SIMONE BARBÈS OU LA VERTU

SIMONE BARBÈS OU LA VERTU (1980) 

de Marie-Claude Treilhou




É impressionante como o cinema ainda é cheio de tesouros escondidos. A internet se tornou um maravilhoso mar sem fim para o cinéfilo curioso. Essa abundância pode gerar uma ansiedade, mas se você quiser simplesmente navegar sem o compromisso de dar conta de conhecer todos os recantos possíveis, você pode simplesmente chegar a lugares nunca antes imaginados.

Um desses lugares que cheguei somente ontem, depois de tanto tempo desbravando, foi esse formidável filme de estreia da cineasta francesa Marie-Claude Treilhou. Já tinha ouvido falar dela por meio de sua inclusão na Diagonale, próxima a cineastas como Vecchiali e Guiguet, mas nunca tinha tido a oportunidade de ver alguma obra sua.

O que mais me impressionou nesse filme é a sua verdade, mesmo sendo tudo tão falso. É como uma cena quase no fim do filme, em que a protagonista elogia a elegância do bigode de um marquês, e ele revela que ele é postiço. Trocando os termos, é essa “elegance avec decadence” rs. O filme consegue dar corpo a um pequeno mundo noturno de Paris, por meio das perambulações de uma funcionária. Esse mundo que, ao mesmo tempo, tem mau cheiro e é fascinante, com histórias banais e surpreendentes. Essa combinação entre o brega e o kitsch. Uma possibilidade de encantamento com as pequenas coisas tediosas. Há um momento em que um senhor chega e conta uma piada para as duas funcionárias. A piada é horrível, mas a cena é maravilhosa. Em outro momento, uma mulher tenta vender um fogão no meio da conversa em uma boite. Essas cenas não estão lá para “jogar a narrativa para frente” mas simplesmente para fazer cinema, para deixar o curso do tempo passar, como na vida. Depois, vemos uma luta estilizada de capa-e-espada. Coisas assim rs. É difícil descrever o fascínio desse pequeno formidável filme. Um filme pós-nouvelle vague, de uma geração que tem o desejo em filmar mas não quer mais revolucionar o cinema, os comportamentos, impressionar que se filma bem, ou coisa alguma. Ele quer simplesmente mostrar a possibilidade de fabular com o que temos ao nosso redor, projetar os nossos pequenos sonhos, desejos e angústias de forma honesta, aceitando nossas precariedades e se encantando com elas, porque é possível fazer algo ainda assim. Quando comparamos esse filme da Treilhou com um filme como Jules et Jim, percebemos como o cinema do Truffaut, que pretendia ser ousado em termos dos padrões de comportamento, no fundo era ainda bastante burguês e preso a convenções do cinema enquanto instituição. O filme da Treilhou é maravilhoso, porque, assim como a personagem, mostra um cinema que se diverte enquanto está sendo feito mas ao mesmo tempo sofre de tédio: é um cinema possível diante de todas as precariedades, mas, em vez de se lamentar, simplesmente se lança ao mundo, com todas as alegrias, dores e angústias que esse gesto pode representar. Um filme imperfeito, um filme feito de cinema, carne e sonhos. Sonhos pequenos, sonhos possíveis. Pequenos dramas do comum em meio a um ambiente incomum. O que poderia soar como bizarro ou grotesco ressignificado para um contexto afetivo. O cinema, a vida, a noite, esse afeto distante, perdido. O trabalho.

O filme é fragmentado, quando menos se espera, ele vai para outro lugar. Parece que o filme percebe que, quando ali já deu, ele se lança para outra tentativa, assim como um voyeur à procura de alguma diversão ou passatempo à noite. O início se passa no saguão de um cinema pornô de três salas, em torno de duas funcionárias que são bilheteiras. As entradas-e-saídas dos espectadores (quase todos masculinos), as curtas pequenas conversas, o som dos filmes que vaza no abre-e-fecha das portas, conferem ao filme um cenário barato mas que remete a uma forma de desconstrução da cinefilia, num modelo de produção simples e elegantemente pobre, que me lembra bastante dos desafios do cinema da Boca brasileiro. Há um momento em que um jovem charmoso sai do cinema e as duas mulheres perguntam se o filme é bom. Ele responde que é apenas um passatempo, pede um fogo, acende de forma sedutora o cigarro, olha para as mulheres, e sai. Essa é a filosofia de cinema e vida da Treilhou!

Às vezes o filme se torna tedioso e sem inspiração, a protagonista está ali apenas esperando sua hora acabar. Quando dá a sua hora, ela simplesmente se vai, e o filme vai para outro lugar junto com ela. Um cabaré estilizado, que quase poderia ser o Inferninho do filme do Alumbramento, mas com certo charme – talvez. Simone simplesmente espera, como sempre, e, enquanto espera, vive, observa, conversa, às vezes ela é maio antipática, ou está apenas cansada e desinteressada, não importa muito bem. Ela não se joga naquele mundo, está sempre distante. Desiste de esperar por sua amada, sai pelas ruas, pega uma carona com um falso marquês, e o filme se passa todo dentro de um carro. Procuram um lugar para beber mas já está tudo fechado – parece Fortaleza rs. É hora de voltar para casa, o dia amanhece. É hora de acabar o filme, já está bom por hoje. Que formidável esse pequeno filme da Treilhou!! Quão jovem é esse filme, mesmo quarenta anos depois!

 


Comentários

Postagens mais visitadas