BALA SEM RUMO (Obaltan, 1961)

MOSTRA DE CINEMA SUL-COREANO - PETRA BELAS ARTES (16 A 30/09/2021)

BALA SEM RUMO (Obaltan, 1961)

de Yoo Hyun-mok



Nesta semana até o fim do mês (16 a 30/09/2021), entra em cartaz na plataforma de streaming do Petra Belas Artes uma pequena mostra do cinema sul-coreano, com sete filmes realizados em diferentes períodos. Um dos destaques da programação é Bala Sem Rumo (Obaltan, 1961), de Yoo Hyun-mok, considerado por muitos críticos locais como o melhor filme do cinema desse país.

É, portanto, uma bela oportunidade para conferir filmes raros da cinematografia desse país que agora ganha destaque pela grande reverberação de Parasita (2009), mas que na verdade possui uma indústria cinematográfica bastante forte, mas ainda muito pouca exibida no Brasil.

Há dois anos tive a oportunidade de compartilhar aqui a alegria de assistir a outro clássico sul-coreano num cinema de Rua em Londres (ver aqui). Bala sem rumo (que seria melhor traduzido em português para “bala perdida”) guarda uma certa familiaridade com The flower in hell (1958), de Shin Sang-ok. Ambos os filmes oferecem um retrato em tom realista das dificuldades socioeconômicas da Coréia no pós-guerra, e o preço moral pago pelas famílias que tentam sobreviver durante a crise. 

Por esse aspecto, muitos críticos associaram o filme de Hyun-mok com o neorrealismo italiano. No entanto, se as questões sociais do pós-guerra estão presentes em chave realista, esse Bala sem rumo parece muitas vezes mais próximo do cinema noir, em sua proximidade com um certo universo da marginalidade, e um apelo ao destino com uma paleta de sombras em preto-e-branco expressionista. Na verdade, trata-se de dois filmes que tangenciam um diálogo entre o cinema clássico-industrial e certas influências do primeiro cinema moderno pré-nouvelle vague, um pouco aos moldes do desafio do cinema baiano dos anos 1950, num momento imediatamente anterior ao Cinema Novo.

Um conjunto de personagens oferece um mosaico dos desafios da sociedade sul-coreana do pós-guerra: um chefe-de-família que trabalha num escritório e é tão mal remunerado que volta para casa a pé; seu irmão, um ex-soldado ferido na guerra, que não consegue uma colocação e vive bebendo com seus companheiros inválidos; a irmã, que passa a se prostituir; a mãe delirante, que apenas grita repetidamente “vamos embora!”; o filho que foge da escola para vender jornais na rua. A família desajustada é o coração da sociedade sul-coreana desfacelada. O fim da guerra parece ser apenas o início de outro fim.

Num momento curioso do filme, o veterano de guerra é convidado para atuar em um filme, de modo a aproveitar suas cicatrizes de guerra. Ele retruca indignado que o filme não precisa dele e sim de suas podres cicatrizes, e que ele não pode vendê-las porque não foi baleado por mera diversão!

Mas, assim como The flower in hell, Bala sem rumo mergulha numa narrativa em espiral, com um percurso cada vez mais angustiante enquanto acompanhamos a desorientação moral dessa família. Um assalto transforma o filme numa sequência de perseguição, em que o fugitivo corre por uma cidade fragmentada, em meio a fábricas abandonadas e marchas de reivindicação que desfilam quase despercebidas. Em outro momento, a saga de um personagem com dor-de-dente se intensifica por sua andança por uma cidade indiferente à sua dor, transformando sua caminhada numa lenta agonia física, em que o torpor se incorpora na mise-en-scène com um efeito asfixiante. Os últimos trinta minutos acompanham, com grande impacto emocional, o progressivo desespero dos dois protagonistas masculinos, os dois irmãos que fracassam, seja pelo caminho do banditismo seja pelo trabalho. Nem a revolta nem a adesão ao sistema os salvará. O amor seca e morre (antes, é belo o reencontro de dois personagens separados pela linha do trem – o tema do destino já prenunciado é forte durante todo o filme); nada parece vingar. O fatalismo desses dois clássicos do cinema sul-coreano do pós-guerra sugere as profundas marcas da guerra na sociedade e na cultura desse país. 

A forma estilisticamente ousada, num entremeio entre o cinema clássico e o cinema moderno, permite ao espectador perceber outros aspectos do cinema nessa transição entre os anos 1950 e 1960, em que diversas cinematografias buscaram ampliar o escopo do cinema industrial clássico na direção de enfrentar os novos desafios da sociedade em transformação daquele momento. Bala sem rumo é um ótimo exemplo desses desafios, em um dos mais renomados clássicos do cinema sul-coreano.


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