WONDER WHEEL


RODA GIGANTE
de Woody Allen







Já há muito venho chamando atenção para o solitário papel de Woody Allen, esse cineasta incompreendido, condenado a realizar um filme por ano por mais de quatro décadas, sempre disposto, a qualquer custo, a empurrar sua filmografia para a frente.

Entre sua volumosa filmografia, é costume mesclar entre a mais típica vertente cômica, os dramas sóbrios de consciência.

Muito se falou sobre a inspiração de Bergman no cinema de Allen, mas mais recentemente podemos ver que as influências se tornaram mais difusas, entre Tchecov, Strindberg e Williams.
RODA GIGANTE, uma obra-prima, coroa a fase de maturidade de Allen, justamente num dos mais críticos momentos de sua carreira, em que se vê atacado pessoalmente e que mal pode se defender. Defende-se, portanto, fazendo filmes – nada mais nobre para um artista que não descansa.

Para aqueles que acusam Allen de ser preguiçoso, ou de ser simplesmente um ágil roteirista mas pouco elaborado em sua mise en scene, RODA GIGANTE mostra ao que veio: alia um enorme rigor e precisão visual sem asfixiar o andamento da narrativa e o apreço pelos personagens – lição da melhor narrativa clássica.

Se a moral trágica de RODA GIGANTE permite vê-lo como um meio irmão de MATCH POINT, o estilo transparente agora cede espaço a uma medida artificialidade.

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RODA GIGANTE – ou, como afirma o título WONDER WHEEL – é um filme de aparências. Seu início apresenta um narrador: um aspirante a escritor que na verdade é um salva-vidas. Alter-ego do realizador, esse narrador meio brechtiano apresenta o palco em torno do qual a história se apresentará. Esse palco-filme (ou palco-vida) é um parque de diversões. Entre a roda gigante e o carrossel, o parque-vida de Coney Island nada mais é que um “barrel of laffs” (um barril de risadas). Assim, WONDER WHEEL não está muito distante de LA RONDE, de Max Ophuls, pois a vida gira artificialmente e estabelece encontros amorosos que culminarão em tragédia.



Esse palco-vida se expressa por meio de um estilo auto-consciente, desdramatizado, não naturalista, claramente apontando para o artifício de sua própria construção, marcando uma teatralização, expressa no decor, na luz, ou seja, na aposta por cenários e iluminação artificiais, por gestos posados e passos marcados. Percebam, por exemplo, o personagem de Belushi, totalmente atípico em relação à sua trajetória como ator, numa oscilação entre o canastrão violento e o ingênuo afetuoso. O filme possui uma combinação ardilosa entre a crueldade e a ternura, entre a ingenuidade e o ardil, entre o romantismo e o pragmatismo, entre a violência e a serenidade.

Assim o é porque a vida nada mais é do que uma grande representação. Ginny, atriz amadora, terá que representar seu melhor papel, nessa involuntária peça escrita a solapões por seu novo amante. Esse “salva-vidas” que, mesmo bondoso, fará tudo ruir, pois seu amor nada constrói. É um ingênuo primo do protagonista de Teorema. O amor dispara as esperanças, e por isso, pode colocar tudo a perder. No seu ato final, Ginny se veste com seu antigo figurino de atriz. Ela se prepara para o seu ato final. Nenhum dos personagens é totalmente vilão ou totalmente herói. Mesmo falsa, a luz abraça os personagens carinhosamente, oscila entre o azul e o âmbar. A tragédia acontece quando todos têm razão, e mesmo assim, tudo dá errado, porque a vida não funciona em sincronia (sintonia). Existe uma ironia, um humor, que invade cada cena, e que nos deixa perceber que seu realizador já sabia desde o início que essa é uma opereta, que as coisas não podem dar certo. O pessimismo de Allen não julga os personagens. Mesmo que os condene de antemão, ele procura entendê-los na pequenez de suas vidas.

Para além do primoroso trabalho de encenação, RODA GIGANTE é contundente porque se assume como um drama moral. Essa pequena ternura diante de seus personagens desgraçados, mas sem eximi-los de suas faltas, é banhada por uma mise en scene sóbria, de um cineasta em sua maturidade.

É curioso perceber que muitas das pessoas que acusam que se prende um presidente sem provas são as mesmas que condenam um artista sem sequer procurar saber as provas do suposto crime. Sinal dos nossos tempos!

RODA GIGANTE é um comentário muito maduro sobre o horror dos nossos tempos, sobre como pessoas comuns e ingênuas acabam sendo transformadas em monstros. Muitos dos críticos norte-americanos não aceitaram esse filme!

RODA GIGANTE é um dos maiores filmes desse autor tão popular e tão incompreendido. Não há simetria nem ciclo. Allen não repete Antígona muito menos acaba seu filme no carrossel. Ao final, opta por essa criança, que não é culpada muito menos é solução de nada.

A casa dos personagens funciona como um anexo do parque, numa estrutura econômica, funcional à dramaturgia e claramente teatral.

Belushi, em atuação que descontroi muitos dos estereótipos ligados à sua trajetória no cinema, trabalha no parque na manutenção do carrossel. Ele mantém o carrossel girando.


Sutileza de Allen nessa cena noturna, dominada pelo azul com detalhes de vermelho, acompanhando a despedida de sua ingênua personagem, condenada pelo destino. A morte é uma sombra desse filme, sempre no extracampo.


A vida é um teatro de mau gosto. Mas Allen não vai repetir Antígona. Veja a incrível luz dourada que Storaro escolheu para banhar esse momento sombrio da personagem. Wonder Wheel é (também) um filme noir


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