NOTAS DE TIRADENTES 2015 (IV)






ERRANTE - UM FILME DE ENCONTROS, de Gustavo Spolidoro

Errante parte de um dispositivo: o próprio diretor realiza um diário em deriva. Sai pelas ruas à procura de um filme, encontra com uma pessoa ou situação, e, segundo o acaso, se desloca para uma outra situação, em alguns dias, no período de Carnaval. Estamos aqui então no campo dos filmes em primeira pessoa, mas Spolidoro não está (a princípio) propriamente interessado em expor uma interioridade ou um mergulho de si, não está interessado na autobiografia. Ele quer sair de casa e encontrar, ele precisa do outro, de modo que todo o percurso do filme é de luta contra a solidão. Formalmente, Errante não é bem um filme-ensaio - como muitos dos filmes em primeira pessoa buscam ser - mas dialoga muito mais com a ficção: ele está interessando em pequenas histórias, em pequenos contos. Assim, podemos traçar um diálogo íntimo com toda a trajetória anterior do cinema de Spolidoro, todos os seus desafios e todos os seus limites: a ideia do plano-sequência, a busca por um cinema jovem, a proximidade com a ficção, o desejo de não estar só. Errante poderia ser um plano-sequência, assim como muitos de seus curtas e filmes anteriores - de Outros a Ainda Orangotangos. Nesses filmes, a câmera também sai pela cidade de Porto Alegre à procura de situações. Mas agora, um pouco mais maduro, Spolidoro não se preocupa com o fetiche do plano-sequência: Errante não é (e nem poderia ser) um filme de composição formal em termos do enquadramento e demais elementos de linguagem, mas um filme pautado por uma urgência. Que urgência é essa? Lançar-se ao mundo, conversar com as pessoas, fazer cinema. Esse despojamento fala muito de todos os desafios do cinema de Spolidoro: a pureza do seu cinema e, ao mesmo tempo, de sua ingenuidade.

Se Errante - como aponta o próprio título - se coloca em deriva, em busca do próprio filme, ele decerto não é Sábado à Noite, doctv de Ivo Lopes em que ele se lança em solidão e silêncio na cidade de Fortaleza. Há muitos paralelos entre os dois filmes para além do dispositivo (um deles é o papel dos animais), mas uma diferença crucial: enquanto Ivo busca um filme de composição formal, quase dialogando com as "sinfonias das cidades" do cinema silencioso, Spolidoro opta por um estilo frontal, um gosto pelo prosaico, o diálogo com a ficção, uma autoironia.

No entanto, esse desejo pelo outro nunca será totalmente satisfeito, é preciso sempre caminhar, caminhar, caminhar. O que me intriga em Errante é que os encontros nunca vão além de um simples contato inicial. Fico pensando no que fica a partir desses encontros. Se o realizador encontra, ele parece mais preocupado em saber no que há por vir do que propriamente mergulhar nesse encontro. Ou ainda, Errante poderia ter mais potência se estivesse mais mergulhado no presente, no instante do encontro, mas me parece que o filme é todo sobre a ideia de futuro: quando ele encontra, há um alívio que o filme possa existir, então ele imediatamente pensa no que há por vir. Ou ainda, Errante olha pouco diretamente para os olhos de quem encontra, e muito mais se desvia, buscando pela rua e pelos arredores o possível próximo encontro. Há uma beleza nesse fato de que os encontros podem ser leves, e que não há propriamente despedida, mas ao mesmo tempo, sinto uma melancolia, pois tudo é tão fugaz e passageiro. Mas aqui a fugacidade não é como o cinema de Jonas Mekas, em que os encontros são fugazes, mas neles, ainda que breves, é possível vislumbrar o paraíso perdido. No caso de Spolidoro, não há propriamente potência que exploda em nenhum dos encontros, mas também não há dor. A vida passa. O que fica? Essa é a pergunta que ressoa ao final do filme, e que não consegue resposta (haveria de ter?).

Mas, ao final, o realizador propõe um certo desfecho: o Carnaval tem um fim. E nada mais melancólico que o fim do Carnaval. No Rio, num autoexílio, se o Carnaval é o ápice dos encontros fugazes, talvez seja o único local onde o realizador não encontrou ninguém. Ele acaba fantasiado entre os restos de uma festa de que ele não participou. A fantasia - outro recurso que aponta para os limites entre o documentário e a ficção - aponta para uma ironia, mas também para a solidão do próprio percurso do filme. Ele então filma três cães que se divertem pela rua. Até os cães não estão sós. Ao final, Spolidoro tem o filme, o que talvez não seja pouco. Mas, para fazê-lo, ao final de tudo, depois de ter encontrado tanta gente, de novo nos volta a pergunta: o que fica desses encontros? o que fica da vida? Erantes me parece ser mais um filme de desencontros do que se encontros. Spolidoro não é mais o jovem prodígio de vinte anos fazendo cinema. Esse herdeiro do cinema de Jorge Furtado me parece que permanece num meio do caminho: de um lado distante do cinema de produção dos anos noventa, dos jovens de sua geração (Camilo Cavancante, Eduardo Nunes, Paulo Sacramento, etc.), de outro, buscando um certo cinema contemporâneo. Com isso, quero dizer que, inesperadamente, Errante parece ser o mais pessoal dos filmes de Spolidoro: um filme em que ele coloca no dispositivo todos os dilemas, os prazeres e as dificuldades do seu cinema. Essa necessidade de fazer cinema sem saber para onde, essa vontade de dialogar sem saber ao certo com o quê. Há uma beleza e uma pureza nesse gesto que se anuncia leve mas ao mesmo tempo uma profunda melancolia, uma profunda solidão. Refaço então o início do texto para perceber que, inesperadamente, Errante é sim um mergulho de si, um filme pessoal, e, portanto, um filme-ensaio, e é absolutamente engenhosa a forma como o realizador procura esconder isso do espectador, e talvez até de si mesmo. Vejo Errante sob a chave do desespero.


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