para sempre amador

Amigos,
todo ano eu escrevo um texto de curadoria para a Mostra do Filme Livre. Segue o texto que escrevi para esta edição de 2014....




para sempre amador

"ser livre é muitas vezes ser só" W.H. Auden


Parece que fomos criados para tentarmos ser grandes blocos de concreto. Um bloco de concreto. Imponente, extenso, sólido, muito difícil de derrubar. Que se vê ao longe e se impõe na paisagem. Mas prefiro ser uma pluma. A um sopro mais forte ela pode se desmanchar no ar. Frágil, quase passa despercebida. Porém leve, flexível, está sempre em movimento. Sem massa, é difícil destruí-la com uma arma de fogo, com um soco, com choque elétrico. O vento a leva meio sem direção. Sua virtude está exatamente em sua fragilidade; em sua leveza e na sua agilidade. O cinema livre me ensinou que prefiro tentar ser essa pluma do que esse bloco de concreto.

*   *   *

O que eu queria mesmo é poder sair esta noite, abraçar as estrelas, arremessar-me no mar, molhar o corpo, rir muito, tirar a roupa, andar nu, cair nos seus braços e dizer eu te amo. Mas o que na verdade faço é apenas observar os outros, um pouco de longe, dentro do meu casulo. Foi assim que descobri o cinema, como voyeur de minha própria vida. Como Tomek, o menininho de Não Amarás. Se não consigo me atirar no mar, fico então aqui dentro da minha confortável casa arremessando garrafas ao mar. Dentro dessas garrafas há bilhetinhos que falam de mim: cada palavra, cada plano, cada gesto, vocês podem ter certeza de que são feitos num esforço imenso em que eu procuro me colocar inteiro, nessa tamanha possibilidade de eu ser eu mesmo. Essa possibilidade grave que me arrepia até a espinha, que me faz abrir a escotilha do meu barco à vela sem velas. E que é de onde eu vejo o mundo, e vejo você, rodopiando com sua saia de havaiana, requebrando os quadris. Queria estar com você mais de perto e dizer eu te amo. Mas não consigo me aproximar, pois há tanta coisa entre mim e você. Como você poderia se interessar por mim? O que eu poderia te dizer? E, além disso, eu não sei dançar. Então jogo mais uma garrafa, com a esperança de que ela possa chegar até você, e que você seja de alguma forma afetada por esse gesto.

Para mim, o cinema é isso. Nada mais. Uma vez, uns amigos que eu tinha me disseram que no início faziam filmes como se fossem cinéfilos, para entender melhor os filmes que tinham visto. E que agora, superada essa primeira etapa, percebiam que deveriam passar a fazer filmes como realizadores. Antes eles eram amadores; agora, são profissionais. Exatamente! O meu desejo (a minha opção) é ser para sempre amador. Não quero me tornar profissional. Não quero aprender como se faz um filme, não quero me tornar um cineasta. Quero apenas jogar esse bilhetinho no mar, quero apenas ter essa possibilidade de dizer eu te amo, quero apenas te dar um presente sem ter que esperar nada em troca. Não penso no público, não penso nos discursos de agradecimento, não penso na minha carreira, não penso com quem devo convenientemente me casar, não meço as minhas palavras nem meus planos para aumentar meu "networking", ou seja, não penso como um realizador. Penso apenas como posso me colocar da maneira mais honesta nesse filme que não faço a menor ideia do que possa ser. Não quero amadurecer. Não quero ser grande. Com o tempo, fui me afastando desses meus grandes amigos que eram amadores e que agora são cineastas profissionais premiados, estabelecidos nesse nosso "(proto)mercado-do-cinema-de-arte". Eles agora moram longe, bem longe de mim. E eu continuo aqui na minha casa com essa escotilhazinha aberta. Continuo sozinho, costurando à mão cada um dos planos que não sei fazer, sem filtros, sem color correction, sem ilha fire, sem mixagem, sem protools. Minha precariedade não me orgulha, mas é o que tenho, é o que sou. Nesse mundo pautado pela eficiência e pela competitividade, vou guiando o meu barquinho de papel (vou sendo guiado), vou remando solitário, dando voltas em torno do meu casulo. Continuo teimando. Daqui de dentro, vejo as pessoas se amando, e às vezes doi. Às vezes preciso de ajuda, me sinto frágil, como se eu fosse um velhinho anacrônico, que vê a vida passar pela janela. Mas isso é o que querem me fazer acreditar. A minha loucura é que, mesmo com todos os meus limites, minha paralisia, meu anacronismo, minhas verrugas, minhas cicatrizes, minha dificuldade motora, eu continuo teimando em sobreviver, eu continuo teimando em deixar aquela escotilha aberta, e de lá fico jogando bilhetes e bilhetes em garrafas, porque vejo um grande mar que me afeta. Não sou espectador de minha própria vida, eu a faço: esta minha solidão não é fuga do mundo, mas um gesto de encontro, é opção que me faz. Porque sou intensamente afetado pelo mundo. Mesmo de longe, vou vivendo e interagindo com o que vejo. Mesmo que o meu amor não seja correspondido, eu continuo amando, tanto quanto antes. Não é a minha vingança, é a minha única forma possível de sobreviver. Como um navegante amador. Para sempre amador.

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