Semana Santa e O Que Teria Acontecido Com Sady Baby? – dois filmes belamente picaretas


Semana Santa e O Que Teria Acontecido Com Sady Baby? – dois filmes belamente picaretas

Entre todos os longas e médias inscritos na Mostra do Filme Livre, dois deles merecem destaque por serem, talvez, os mais radicais. Semana Santa e Sady Baby são dois trabalhos recentes de um grupo de jovens realizadores de Minas Gerais que se distanciam das tradições do cinema poético mineiro e do diálogo com a videoarte exemplificada nos trabalhos do coletivo Teia. Já em Estado de Sítio, longa-metragem realizado coletivamente por oito diretores, esse grupo de realizadores expõe sua estilística cinematográfica como um ataque frontal ao suposto bom gosto das produções fílmicas brasileiras. Busco, então, neste texto, aproximar os dois filmes, que me parecem complementares, realizados, cada um deles por uma dupla de realizadores, auxiliados por outros tantos. Mais que diretores, amigos que compartilham a realização de um trabalho de descoberta, mais do que o resultado final. São filmes imperfeitos, irregulares, mas que respondem a um apelo fundamental para o espírito desta Mostra: a possibilidade de apontar sempre para o inesperado, de criar tensões, de serem filmes sobre a descoberta, de ampliar os limites do que estamos vendo e cobrindo em termos de cinema brasileiro. São dois filmes de realizadores que querem dialogar com uma tradição de um cinema brasileiro imperfeito, resgatando o espírito anárquico e descompromissado dessas produções, como um gesto de afronta aos filmes que buscam o “bom gosto” das convenções estilísticas do cinema contemporâneo ou sua mera inserção num circuito de legitimação, em especial os maiores festivais nacionais e os internacionais.

Semana Santa, de Leo Amaral e Samuel Marotta, apresenta-se a princípio como um filme que possui uma relação ambígua entre os limites do documentário e da ficção, pela forma como a dupla de realizadores se infiltra numa procissão de Semana Santa em uma cidade no interior de Minas Gerais, interagindo com os moradores locais. O filme possui sempre um tom de mistério, acompanhando a peregrinação dos dois realizadores pelas ruas da cidade, entrando aos poucos no tom cerimonioso da procissão. Mas aos poucos, o filme abandona essa postura inicial para assumir um tom nitidamente debochado, como uma crítica frontal, nitidamente caricata, aos rituais eclesiásticos, como espelho de uma crítica mais ampla aos valores das instituições, incluindo, entre elas, é claro, a “instituição-cinema”. Uma ceia é formada com um conjunto de amigos, quase como uma paródia a Viridiana de Buñuel, mas com um tom caricato que nos remete mais à amizade entre os integrantes dessa mesa. É dessa oscilação entre a ternura e a crítica que Semana Santa procura se equilibrar. Após a segunda metade, há uma certa descontinuidade, e surge uma das cenas mais pulsantes do recente cinema mineiro: uma cena na piscina que me lembra, de leve, do clima da famosa cena de Rio Babilônia, embora (infelizmente) mais leve e ingênua. Picardias estudantis. Flamingo brinca, bastante à vontade, com algumas meninas na piscina. Num longo plano-sequência, aqui não há espaço para a dramaturgia narrativa: os personagens brincam de ser, não importa mais se são atores ou personagens, se tudo é encenado para a câmera ou se acontece de fato ali. Ou seja, há uma dobra dos sinais entre o real e o encenado que se apresentam na primeira parte (a procissão) quase ao avesso. Dobra que fica mais do que caracterizada quando, de forma espelhada (invertida) em relação ao início do filme, um personagem anda pelas ruas da cidade. Mas não é mais um personagem (um dos realizadores) e sim um dos moradores da região. Mas que se torna desde já um personagem. E assim em diante.

Já em O Que Teria Acontecido Com Sady Baby?, de Leo Pyrata e Flavio C. von Sperling (“Flamingo”), o discurso vai ser ainda mais radical. O filme se apresenta como um documentário de percurso, em busca do paradeiro do obscuro cineasta brasileiro Sady Baby, que desenvolveu uma certa marca em filmes pornôs na virada para o sexo explícito em meados dos anos oitenta por abordar um universo punk, com personagens depravados e marginais. Filme de cinema, Sady Baby? é um filme-homenagem a um cineasta absolutamente marginal, que fazia cinema para sobreviver, um “cinema belamente picareta”, claramente afastado dos circuitos de legitimação. Essa é justamente a beleza de seu cinema, seu suposto descompromisso, sua paixão em filmar da forma como era possível, pela forma frontal com que o diretor abraçava o universo dos seus personagens sem retoques e sem fantasias, de forma crua.

Leo Pyrata escreveu para a Revista Zingu uma curiosa crítica sobre um dos filmes de Sady Baby, “O Ônibus da Suruba”. Possivelmente essa seja a única crítica já escrita sobre esse filme. Essa crítica já é em si um ato extremamente subversivo, pois Pyrata parece ser o único (um dos raros) que consegue ver a possibilidade de que esse filme “mereça” uma crítica.
“O filme é feio, sujo e forte, principalmente pela distância que se situa das convenções higiênico-eugênicas da fotografia publicitóide de produções contemporâneas como Bruna Surfistinha e outras bundas mais lindas da cidade. Negar a força cinematográfica de Onibus da suruba é como partir em defesa da ditadura do belo, programático, limpo e eficiente e se afinar com as carolas medianas da mercantilização doriana da imagem. Hoje mais que nunca trata-se de um filme belíssimo.” (http://revistazingu.net/2011/06/14/o-onibus-da-suruba/)

Essa crítica deixa bastante clara a admiração de Pyrata pelo realizador, não pelo “bom gosto” de seus filmes, mas exatamente por como o filme afronta as convenções do bom gosto. O que gostaria de destacar é que Pyrata acaba dizendo que “hoje mais que nunca se trata de um filme belíssimo” (itálico meu). É essa noção de “beleza” que me interessa destacar, pois os filmes de Sady Baby a princípio se afastariam de tudo o que possamos considerar como belo. Mas são belos extamente pela forma frontal como veem o cinema acima de todo e qualquer circuito de legitimação. É bela a sua forma de fazer um cinema possível em meio a toda a sua aparente impossibilidade de fazer algo. É belo o seu desejo de simplesmente fazer um cinema visceral, fiel ao seu próprio universo. Um cinema que sobrevive.

Assim, como fazer uma homenagem a Sady Baby? Através de um filme “feio, sujo e forte” nas próprias palavras de Pyrata. Um filme que possa agredir o espectador exatamente pela beleza de suas intenções e pela sua aparente despreocupação em agradar. Os dois diretores fazem assim um filme-picareta, um filme-oportunista. No entanto, não há nada mais doce e terno do que a picaretagem e o oportunismo desse filme. Simulam então um filme que vai em busca do paradeiro de Sady Baby. Montam um projeto e conseguem, toscamente, um financiamento fornecido por Ataídes Braga. Quase como uma paródia de uma coprodução internacional, vão ao Uruguai (aproveitando a seleção de Estado de Sítio no prestigioso festival da Cinemateca Uruguaia) e vão em busca desse filme em processo de ser feito. Andam de táxi, passeiam, visitam a Cinemateca, bebem, vivem, conversam um pouco, visitam um puteiro, andam pelo porto, filmam. Até que o dinheiro, o saco e os cartões de memória acabam. É hora de voltar para casa. Nada mais picareta. Nada mais belo. Uma banana para tudo o mais. Sady Baby não morreu. Viva o bom cinema picareta brasileiro!

Comentários

Pedro H. disse…
A unica qualidade do filme Semana Santa foi não ter usado dinheiro publico para sua realização. De resto, um lixo.

Kassius disse…
Já transbordamos em picaretagem e oportunismo... forte mesmo seria fazer algo simples e belo, que apele para a maturação do ser humano e não para a idealização da merda!

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