Entorno da beleza e L´apollonide


Gostei de Entorno da beleza, doc de Dácia Ibiapina, exibido em Tiradentes, sobre o universo do concurso de misses nas cidades satélites de Brasília. Algumas coisas me interessaram em particular nesse filme. Uma é seu olhar inusitado para a cidade e para a periferia, através de um concurso de beleza. É interessante pensá-lo como um olhar para as periferias de Brasília. Ele quebra um olhar preconbebido que veria esses concursos apenas como espaço de afetação, de meninas vaidosas e alienadas. Ao contrário, o filme é humano porque se debruça sobre esse mundo construído por mulheres comuns que lutam por seus sonhos. Daí o filme é preenchido por personagens que o senso comum rotula de desinteressantes com uma surpreendente dignidade.

De outro lado, acho muito sintomático que o filme não faça piadas ou gracejos com a suposta breguice desse universo. Ou seja, por trás de uma certa dureza, no fundo é um filme delicado e feminino, talvez como espelho da própria realizadora, assim como a vejo. O filme se coloca numa posição muito digna em estar nesse espaço – essa posição ética é o grande trunfo do filme. Como exemplo, digo que as sequências que mais me encantaram no filme são as que as meninas conversam entre si nos camarins ou nos intervalos de preparação para os espetáculos e ensaios. Ali o filme cria, através de uma mise-en-scène, um espaço de convivência entre as meninas, que dividem um momento de afeto e intimidade. Penso, de forma curiosa, esses trechos como uma espécie de L´Apollonide trazido para o contexto do cinema documentário contemporâneo brasileiro. Com isso, não quero ser mal interpretado: não digo que o concurso das misses é como uma casa de tolerância, mas simplesmente aponto para pontos de contato entre os olhares dos realizadores, em buscar o afeto e a intimidade entre meninas que estão juntas, revertendo olhares-clichês sobre o espaço de convivência do “por trás dos bastidores” de lugares empurrados para uma marginalidade, para a simples exploração dos corpos femininos. (As mulheres nos dois filmes não são vítimas, e – acima de tudo –  os olhares dos realizadores não a focam como vítimas, mas como cúmplices de um espaço de convivência onde há dor mas também espaço para a amizade, o sonho e o afeto). Nesses interins (nesses tempos de espera, nessas pausas), o filme revela sua força de observação, uma força dessas mulheres guerreiras que se completam na intimidade, que lutam por seus sonhos, em serem vistas como belas. (Elas também têm o direito de serem belas). Em outros momentos, em que o filme descreve as etapas do concurso, ou que procura situar o espectador do “entorno”, fazendo perguntas às entrevistadas (tipo “o que a beleza mudou sua vida?”), o filme escapa de sua estratégia de sutileza e, para mim, se tornou menos interessante. De qualquer forma, não há nenhum Dildu caricato/carismático que atraia nossa atenção, e talvez por isso Entorno da Beleza passe menos percebido, mas tenho a impressão que ele nos mostra mais o que é a cidade de Brasília do que o recém-badalado A cidade é uma só, filme-primo do de Dácia, já que os realizadores têm certa proximidade (e que não é a da origem social!).

Comentários

Beleza, Ikeda. Fiquei ainda mais curioso para ver esse filme. Pelo visto, tem semelhanças também com aquele do Rithy Panh, "O Papel não Embrulha a Brasa", ou algo assim. Ali também eram prostitutas, como em "L'Apollonide", mas tinha essa busca de um espaço de intimidade e um olhar terno para mulheres estigmatizadas.

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