A Separação coloca no centro do debate uma questão ética. São duas classes sociais em choque e as representações que temos dessas classes sociais, a legitimidade que conferimos a certas situações sociais. O filme expõe esses limites éticos de forma franca e ambígua, de modo que ficamos na dúvida até que ponto uma ou outra parte é oportunista, mentirosa ou honesta. E no final concluímos que é uma mistura de tudo isso. Esse jogo de mentiras se espalha entre a família, a escola e a religião, formando um panorama que claramente extrapola o mero caso concreto em si, para uma análise mais ambiciosa sobre o estado das coisas no mundo de hoje. Ainda mais por se tratar de um filme iraniano, rompendo certos paradigmas da representação de uma sociedade iraniana, fazendo-nos pensar que na verdade o Irã está aqui. Uma câmera na mão dá grande liberdade aos atores, num estilo semidocumental mas também sem grandes exageros.

Ao mesmo tempo, é curioso pensarmos que se a questão ética é a chave (o centro do debate) de A Separação, talvez o que mais me incomode no filme seja exatamente como o diretor manipula situações, sentimentos e encenações de modo a tornar o filme um pastiche de si mesmo, um melodrama caricato desse conjunto de representações, levando as situações para um ponto-limite. Se a chave é a ética, A Separação não é Rosetta, em que, por meio dos atos da ambígua protagonista, que uma câmera “observacional” “meramente acompanha”, tomamos contato com uma questão social que extrapola a iniciativa individual. Pois se Rosetta se concentra no implícito, em A Separação tudo deve ser explícito demais, até as elipses, que serão todas devidamente explicadas ao final do filme. Tudo funciona a nível descritivo, o embaralhamento (das vozes, das palavras e dos pontos de vistas) serve apenas como uma estratégia detetivesca de levar a atenção do espectador de um a outro ponto como suspense (quem tem a razão?) mas não como reflexão ou distanciamento. Ao invés de se distanciar do embaralhamento, as estratégias de encenação do filme fazem o espectador “se divertir” em mergulhar no excesso de informações, como se assistisse a um programa policial, ou percorresse uma montanha russa de acusações e blasfêmias. Se há um mérito na forma franca como o diretor coloca frente a frente lados opostos, exacerbando as hipocrisias e os limites de cada um desses “lados”, o que me incomoda é a estratégia utilizada pelo filme para “jogar no ventilador”. É o que se resulta desse embate: na verdade menos um olhar crítico do que algo muito parecido com as lavagens de roupa suja de certos programas de TV. O fato de ser um filme iraniano – e o suposto interesse que deriva desse fato para grande parte dos espectadores – nos assusta ainda mais, comprovando que é um filme feito sob medida para um certo mercado internacional, ou seja, o oposto da sutileza e delicadeza da metafísica de um Abbas Kiarostami, por exemplo.

Diz a lenda que o Bela Tarr ficou muito furioso quando seu filme perdeu o Urso de Ouro para esse filme iraniano. Faz sentido. Nada mais distante do cinema poético de Tarr. Parece que ele esbravejou que a política está valendo mais do que o cinema, talvez se referindo ao contexto favorável ao filme com a prisão de Panahi. Mas mais do que a política talvez o que interesse na consagração de A Separação seja o mercado: mostrar um filme iraniano que comunga com certos valores da sociedade ocidental. Por trás de suas inteligentes estratégias de verossimilhança, A Separação mostra indivíduos autocentrados, individualistas, politiqueiros e estrategistas. E nos faz pensar que somos exatamente como eles.

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