Tenho profundas dúvidas sobre a nobreza das intenções de O Garoto da Bicicleta, novo filme dos Irmãos Dardenne que estreia no circuito comercial brasileiro (claro que não no Nordeste). De um lado, o filme é uma obra de continuidade na filmografia desses notáveis diretores belgas, uma parábola humanista sobre um menino que tenta buscar afeto num mundo que quase sempre o responde com um murro de mão fechada. O filme me parece com um certo tom quase que de homenagem a Ladrões de Bicicletas, e as relações entre os dois filmes não residem meramente no entrecho da narrativa ou pelo papel central da bicicleta colocado pelo próprio título. Vem especialmente a partir de um certo humanismo frouxo, de uma adesão a um olhar neorealista sobre o tom moral da ficção. Os Dardennes ficaram reconhecidos no final dos anos noventa especialmente por sua aproximação com o cinema do Bresson: Rosetta é praticamente uma refilmagem de Mouchette. Pensar nesse deslocamento, uma década depois, entre o cinema de Bresson e o neorealismo de De Sica é uma forma de entender as mudanças entre as opções dos Dardennes para a encenação do filme. Por um lado, continua a câmera na mão sempre próxima aos personagens, o impressionante cinema do corpo fielmente atento à interpretação dos não-atores (o trabalho dos diretores com o "garoto" é de fato impressionante). Por outro lado, há um amaciamento dos recursos de linguagem: não há mais aquele exasperante asfixiamento, a opacidade dos personagens, o sentido de vertigem e de deslocamento que o espectador sentia ao presenciar situações-limite, temas delicados (se pensarmos em Rosetta ou O Filho). Sinto que a inicial adesão ao cinema do Bresson se dissipa quase por completo nesse O Garoto da Bicicleta. É só pensarmos na própria trajetória de Bresson, em que seus filmes foram se tornando cada vez mais incompreendidos e obscuros, a partir justamente de Mouchette. Os Dardennes vêm fazendo o caminho oposto. O tom límpido da fábula humanista dos Dardennes faz com que seu cinema seja cada vez mais visto, cada vez mais compreendido, como um prolongamento de seus filmes anteriores, mas sempre amaciando a radicalidade de cada filme. Essa limpidez pode ser vista como um elogio, como sinal de amadurecimento, como se se deixasse o supérfluo e se mergulhasse nos personagens e na dramaturgia, como se fosse tudo o que se tem. Mas tenho dúvidas. Em momentos que não são raros, o olhar dos Dardennes, suas opções de encenação, geram momentos de psicologia rasa, revelam um melodrama meio que rasteiro. Em outros, há instantes iluminadores, já que seu talento é indiscutível. O que quero colocar aqui, acima de tudo, mais do que se este “é ou não um filme bom”, é o caminho do cinema dos Dardennes, e suas opções em termos de encenação. Como encenar um mundo, como encenar um gesto? Em relação a seus filmes anteriores que me traziam tantas questões, este O Garoto da Bicicleta me parece algumas vezes fruto de um cálculo sem alma, trajetória de realizadores que ao invés de problematizar sua própria obra, resolveram simplificar não para problematizar ou aprofundar (como Ozu ou HHH), mas para aconchegar-se num lugar mais calmo. Se no A Criança essa simplicidade eu conseguia ver como um elogio, aqui já acho que não raras vezes descamba para um remanso menos interessante. Vejamos os próximos!
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