o "evento" Paissandu

Entre os dias 29 e 31 de agosto, anunciou-se o fechamento do Estação Paissandu. Um verdadeiro rebuliço foi criado pelo Jornal O Globo, já que o cinema é evidentemente um dos mais tradicionais da cidade. Formou-se então um “evento”: durante todo o final de semana, foram exibidos clássicos do cinema a R$1. Ótimo, a princípio, se não tivesse se transformado num “espetáculo”, numa “casa de horrores”: jovens fazendo poses para fotos, estudantes de cinema com várias câmeras para fazer documentários, candidata a vereadora distribuindo santinhos, etc. Ou seja, o fechamento do Paissandu, patrocinado pelo O Globo, virou “o evento” do final de semana, e as pessoas que iam lá para presenciar esse “espetáculo da despedida” estavam interessadas em tudo, menos no cinema, menos no filme que ia ser exibido. Esse era o mero detalhe, era o que justificava o circo, a festa, a agitação, o evento, o espetáculo. Game over.

No meio de todo o circo, acabei vendo apenas quatro filmes, embora tivesse me programado para ver muitos mais. Tive coragem para arriscar a famosa superpoltrona da primeira fileira do cinema, e foi um espetáculo: foi uma das maiores experiências ver Le Feu Follet na última sessão do Paissandu nessa superpoltrona. Mesmo diante de todo o circo.

Bom, queria escrever com mais detalhes, mas vou conseguir apenas rascunhar algumas coisas sobre os filmes que (re)vi no Paissandu.

L´Atalante
De Jean Vigo
*** ½

Esse pequeno filme do Jean Vigo é muito à frente do seu tempo. Vigo, já no início dos anos trinta, compreendeu muito bem qual é a essência do cinema. A partir de um material vagabundo, de parco interesse, transformou L’Atalante num cântico de amor à vida, de enorme expressividade, um dos trabalhos de maior liberdade que eu já vi no cinema. Simples, pobre, roto, L’Atalante tem um tom ambíguo, uma combinação estranha (i.e extremamente particular) de um realismo meio brutal com um lirismo fantástico, ou, por outro lado, de uma simplicidade rústica e de uma sofisticação formal ímpares. Uma decupagem estranha, com alguns ângulos de câmera extremamente inventivos, supostamente influenciados pelo cinema vanguardista francês dos anos vinte, e com saltos de montagem e de eixo (embora isso possa ser devido ao atribulado processo de montagem do filme, que praticamente não foi concluído por Vigo e pelas outras versões do produtor para que o filme conseguisse ser lançado…). Uma atuação impagável de Michel Simon como o Tio Jules, que é um resumo do filme (apesar de um pouco careteira). Uma cena inesquecível: o contato da esposa do capitão (Dita Parlo) com o quarto onde dorme Tio Jules, ou seja, com o seu mundo, com seu passado, com seu corpo tatuado, com sua vida, com suas esperanças e desejos. Um aposento pequeno, sujo, mas enormemente íntimo, que a câmera de Vigo abraça com enorme senso de afetividade. Outra cena acontece no bar em Paris em que o capitão e a esposa vão tomar algo, e um vendedor ambulante começa a se insinuar para a esposa do capitão, e Vigo resolve de forma extremamente simples e eficiente a cena com dezenas de figurantes. O filme possui um misto de uma alegria esfuziante mas também de uma certa melancolia, uma síntese da vida no mar daquela “família improvisada”. Belo filme.


O Desprezo
De Jean-Luc Godard
*** ½

Fascinante a experiência de rever O Desprezo na tela em cinemascope no Paissandu. O Desprezo é sem dúvida o filme mais acabado do Godard, uma espécie de um duro testamento de uma filmografia, ainda que estivesse no início de um caminhar. O brilhantismo técnico, a complexidade do roteiro, em especial como aborda as interseções entre um relacionamento amoroso e o profissional, ou seja, o amor e o dinheiro, o sexo e o poder, o cinema e a prostituição, tornam O Desprezo um dos grandes marcos da história do cinema. O Desprezo é um filme sobre um filme sendo feito (metalinguagem) mas não é só isso, ou não fica só nisso. Um produtor milionário (Jack Palance) contrata um roteirista (Michel Piccoli) para alterar o filme que está sendo dirigido por Fritz Lang. O roteirista traz sua exuberante mulher (Brigitte Bardot) e aí tudo começa: cinema, poder, amor, sexo, dinheiro, sonhos, prostituição. Minha leitura é que Bardot deixa de amar Piccoli (ou melhor, passa a sentir desprezo por ele) por se sentir usada num plano inconsciente de Piccoli de se promover no cinema, “oferecendo” sua esposa para o produtor. A forma ambígua como Godard trata este tema se aprofunda numa sequência no apartamento do casal, que nos remete à longa sequência de Acossado, mas agora modificada. De outra parte, há o cinema: Fritz Lang, com uma participação notável, faz uma espécie de contraponto ao produtor “bom vivant”. O que talvez seja o primeiro filme de Godard de grande proidução é por um lado a prova de que Godard é um mestre do cinema no sentido de um domínio plástico e técnico, e por outro uma crítica à futilidade que envolve o cinema de grande produção.

Há algo nesse filme que me incomoda bastante em relação à forma como Godard aborda o drama de um relacionamento amoroso, com uma certa futilidade. Várias coisas me lembraram de um relacionamento passado, talvez por isso uma certa implicância. Algo na composição dos personagens (cada qual representando o seu “papel” ao invés de ter uma natureza mais pessoal, mais própria) também me incomoda em muito, em especial o produtor. Mas é um filme da década de sessenta, não é cinema contemporâneo, e não há como não dizer que O Desprezo é praticamente uma obra-prima, de um rigor, profundidade e complexidade indiscutíveis. Basta comparar a sobriedade da visão de Godard com o processo do cinema com a trivialidade de Truffaut no A Noite Americana.


Parade
De Jacques Tati
** ½

O cinema de Tati sempre foi um tanto avesso às classificações, mas nesse que foi seu último filme, Tati foi num certo sentido mais além, simplificando para complexificar. Ainda que não tenha a sofisticação formal de um Playtime, Parade é um filme em que nos perguntamos o tempo todo qual é a natureza do cinema. Parade é complexo, porque por um lado parece um documentário sobre uma apresentação circense, composta de esquetes, filmado com mais de uma câmera, em vídeo, exatamente como um programa de TV. Ou seja, por um lado, a referência do “teatro filmado” dos anos dez: o cinema como um registro de uma apresentação num palco que se desdobra diante da câmera que apenas observa. De outro, a TV, o vídeo, mais de uma câmera. Mas por trás disso, há o cinema de Tati, há, é claro, a presença do som, há um enorme desabafo que o cinema precisa retroceder para poder avançar. Esse recado fica claro quando o próprio Tati faz uma pantomima: com absolutamente nada, a platéia ri, o cinema se faz diante de nós.

Parade é complexo: é um filme não apenas de um espetáculo que de desdobra diante de nós. É também isso (as esquetes, a pantomima, o som, o cinema como circo, a leve melancolia, o cinema não como roteiro mas como um conjunto de gags que se desdobram, etc). Mas por outro lado, é um filme sobre o contracampo, sobre a reação da platéia, e não é à toa que em alguns momentos, a platéia interaja com o espetáculo, transformando os dois em uma coisa só. Documentário ou ficção, já que é claro que as pessoas da platéia que interagem com o espetáculo foram previamente combinadas? E, por fim, há o fim, um recurso de enorme poder lírico, uma discurso de despedida de Tati, recurso simples mas de enorme alcance em que diz que enquanto duas crianças ainda puderem se encantar, o circo nunca vai acabar. O circo, ou seja, a pantomima, ou seja, o cinema retrógrado, teatral e televisivo de Tati. Um viva!


Trinta Anos Esta Noite
De Louis Malle
***

A verdade é que este filme do Malle envelheceu um pouco visto de hoje, mas vendo-o parece indiscutível sua repercussão dentro dos anos sessenta e especialmente aqui no Brasil, para a geração do cinema novo, quando pensamos em diversos filmes da chamada segunda fase (de O Desafio até O Bravo Guerreiro). Maurice Ronet percorre bares, visita antigos amigos, tenta recuperar para o presente os rastros perdidos de um passado um tanto distante, de uma vida em que ele não se encaixa mais. A antiga euforia se revelou passageira, e agora há um profundo vazio espiritual e um agudo sentido de solidão. Ele se sente ridicularizado pelos “antigos amigos” mas também não quer levar uma vida medíocre, com um emprego medíocre e uma esposa medíocre. Tem sonhos grandes mas se sente pequeno demais para poder continuar com eles. Delicado (o início é a parte que eu mais admiro, especialmente quando pensamos o que virá depois) e íntimo, Le Feu Follet não cai no melodrama da “vida perdida” ou da “condenação do passado”. E como marca de um cinema moderno, tem na perambulação do seu personagem-central e na importância das locações em externa um modelo de forma de se fazer cinema que impressiona ainda hoje.

Comentários

Anônimo disse…
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