11A MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES

EXPERIÊNCIAS DE TIRADENTES - PARTE I

1 – Sobre meu papel

Esta é uma cobertura não-oficial de Tiradentes. Ou seja, uma cobertura típica deste blog. Como realizador de dois vídeos, estive lá a uma distância saudável da dezena de críticos que cobriam o evento, de diversas partes do país. Críticos de jornais, de revistas, de sites. Menos de blogs. Câmeras, gravadores, caderno de notas.

2 – Sobre a curadoria

Tiradentes é uma das poucas mostras de cinema no Brasil que tem uma proposta séria de curadoria. É nítido o cuidado e o carinho de toda a curadoria, especialmente do Cleber Eduardo, “curador-mor”, em torno dos filmes e das propostas dos realizadores. Sem pré-conceitos e sem rótulos. A preocupação com os filmes de estreantes na Mostra Aurora e a obsessão em estabelecer diálogos e com a organização dos curtas no interior das sessões. A preocupação com os debates em acolher os filmes e propagar sua repercussão.

O grande tema colocado em questão na Mostra foi uma idéia de juventude. Realizadores jovens fazendo seus primeiros filmes, muitos dos quais tocavam em questões da juventude. Uma ênfase que esses jovens compõem uma “geração”, pois esses filmes têm diálogos… Outros temas: uma idéia de trânsito, corpo, relações com a cidade e relações formais (p ex o plano sequencia ou a questão do tempo).

O segundo ponto é o despertar de um cinema cearense, presente nos longas (Sábado à noite e O Grão), nos curtas e especialmente nos vídeos, de grande inventividade formal e com grande interação entre eles. Era comum ver o “núcleo cearense” se locomovendo junto pela cidade. Propostas formais e pessoais, diálogos transversais. Enormes promessas. Uma obsessão do Cleber descobrindo o cinema cearense do mesmo modo como Cannes projetou o cinema romeno.

3 – Cinema versus vídeo: mais um round

Dentro dessa proposta da curadoria de se buscar uma renovação estética e a busca de novas linguagens ou de abordagens particulares, uma contradição que não poderia passar em branco é a dissociação entre vídeo e película. A preliminar às 16:30 é a do vídeo com uma projeção apenas razoável; o horário mais acessível de 18hs a dos curtas em película. “vídeos” de um lado e “curtas” de outro (como se os vídeos não fossem curtas, e como se os longas não tivessem vídeos e 35mm misturados). Isso é incrível pois boa parte dos “curtas” foi composta de filmes em vídeo que passaram de categoria pois pagaram um transfer. Sem falar que dos sete filmes do Aurora (competitiva de longas), apenas um (Corpo), foi filmado e projetado em 35mm. Isto é, todos os outros foram ou captados ou finalizados em suporte digital. Ou seja, a segregação entre video e película é toda de ordem econômica e nada estética. Coisas do Brasil (isto é, muito além da Mostra): você só é considerado “aspirante a cineasta” se fizer um curta FINALIZADO em 35mm, o resto é amadorismo. Enfim, uma questão que a mostra não soube bem resolver.


3 – O primeiro longa dos jovens realizadores

O primeiro longa dos jovens realizadores visto na Mostra é um cinema da superfície. Ainda Orangotangos, Meu Nome é Dindi, Amigos de Risco são isso: um deslumbramento pela possibilidade de gritar o primeiro “ação”. Um deslumbramento às vezes saudável; às vezes juvenil. Crítico não é um trabalho pessoal do Kleber. Ou seja, ele ainda vai dirigir seu primeiro longa. Corpo, talvez pela idade e pela trajetória dos realizadores, não coloca questões relativas a “um primeiro longa”, isto é, não se apresenta como primeiro longa, o que é muito curioso. É simplesmente um filme, e não “um primeiro filme”.

Do outro lado da moeda, temos Sábado à noite e O Grão. Eu brinco que são dois filmes de Ivo Lopes Araújo. Mas é brincadeira, pois O Grão tem o cinema do Petrus. São dois filmes da quente e ensolarada cidade de Fortaleza. Mas poderiam ter sido feitos na Finlândia. Fortaleza é muito mais próximo de Taiwan do que do Rio Grande do Sul. Talvez as distâncias tenham sido encurtadas pela Internet. No Ceará, é muito mais fácil você conversar com os realizadores sobre Pedro Costa do que sobre Meu Nome Não É Johnny, ou mesmo Amigos de Risco.

De qualquer forma, há um incrível desejo dos dois filmes cearenses de não fazerem filmes “jovens”, de não fazerem “filmes sobre a juventude”. De escaparem de um cinema que busca o maravilhamento do dispositivo ou o deslumbramento com as superfícies para, ao invés disso, embarcar num cinema bastante particular, de incontáveis dilemas e cicatrizes. Um cinema austero, rigoroso, singular e pessoal.

4 – os vídeos

Observo que, das sete sessões de vídeos, perdi as sessões 1 e 2. Portanto, este é um recorte parcial. E, evidentemente, vou me eximir de comentar meus próprios trabalhos – É Hoje e Eu Te Amo. Que, evidentemente, são duas pequenas ilhas em relação ao que foi visto.

Achei a curadoria de vídeos um pouco confusa, dado que a proposta da mostra é a busca pela ousadia, renovação, juventude e novidade. Isto porque, dentro da seleção de vídeos, havia trabalhos bastante convencionais, como Lúmen, Torto, Bem Intocado, Parabéns, Casa em Ruínas e Doce Amargo Infinito, vídeos que são no máximo “corretos”, ou que ainda esbarram em uma série de clichês na abordagem de seus temas.

Por outro lado, há um conjunto de vídeos ousados muito pouco exibidos que receberam um destaque da mostra. Os destaques foram os vídeos do Ceará, com a exceção de Doce Amargo Infinito, video que explora clichês sentimentais através de uma poesia gasta sobre um Nordeste idílico numa colônia de pescadores. Os melhores momentos são uma noção de enquadramento que nos impregna de uma certa melancolia (curiosamente feito por Ivo Lopes Araújo).

Os primeiros destaques são os vídeos de Salomão Santana. Vidança, feito em parceria com Annádia Leite Brito, recupera uma visão de um Nordeste rural e o contato do homem com a terra, mas sob uma nova prespectiva. Filme austero, feito de quatro planos que na verdade são três, funciona quase como um haicai japonês. O primeiro plano, fantástico, já poderia ser o plano da Chantal Akerman em O Estado do Mundo: o percurso em direção à câmera, o som ambiente (como em A Man. A Road. A River.) num plano geral frontal que mostra o caminho da estrada de terra e as enormes torres de retransmissão de energia que compõem essa paisagem. Mas o homem ainda sente a terra, tem o contato com o solo, com os pés descalços – plano ponto de vista que mostra todo o contexto místico que abraça esse singelo curta. Mas ainda não satisfeitos, os realizadores não querem apontar para um filme fechado, e abrem para um maravilhoso quarto plano, um plano lateral, que quebra essa perspectiva orgânica para evidenciar ainda mais seu processo de construção e explodir as possibilidades da construção do espaço, fugindo do belo ponto de fuga para valorizar o mato do entorno.

A Curva é ainda mais sutil que o sutílimo Andança. Salomão se baseia em imagens de arquivo que são os primeiros registros em VHS caseiros em Juazeiro no final dos anos oitenta. Essas imagens mostram rostos (primeiros planos) de pessoas comuns em uma festa qualquer, sentados à mesa. A presença da câmera transforma as pessoas, que têm reações diversas, da irritação, ao descaso e ao deslumbramento. Passando pelo cinema dos irmãos Lumiére ao de Jonas Mekas, o fantástico de A Curva é evidenciar que o que nos fascina nas pessoas (e especialmente em seus rostos) não é o que eles revelam mas o que eles escondem, o que só nos remete a uma enorme cultura anterior dos pintores de retratos. Em sua inocência, em sua pureza e em seu domínio desse sagrado mistério que é a natureza do cinema e da representação, Salomão alcança em A Curva, um nível extremamente complexo e sofisticado das possibilidades de trabalho com o registro e com a liguagem cinematográfica.

Cruzamento, de Pedro Diógenes e Guto Parente, é um trabalho produzido na Escola de Audiovisual de Fortaleza, que vem revelando grandes talentos. Trata-se de um trabalho singular, de cunho narrativo, mostrando o contato visual entre um limpador de pára-brisas em um sinal de Fortaleza e um motorista solitário. Todo o filme se passa no ponto-de-vista do motorista e como ele estabelece uma necessidade de ligação afetiva com essa limpador de pára-brisas que, primeiro ele ebncontra ao acaso e depois, cada vez mais, arma um conjunto de subterfúgios para cruzar com ele. Essa distância afetiva entre esses dois mundos (o interior e o exterior do carro, classes sociais) cruza com um espaço físico da cidade através de um espaço púiblico, marcado pelo trânsito e pelo deslocamento (ou seja, por relações essencialmente transitórias). Ainda, os dois diretores dialogam com o cinema de Kiarostami, seja pelo uso do carro e pela “abordagem”, que nos lembra de filmes como O Gosto da Cereja ou Dez. Mas sem nunca emular uma estética, e sim absorvendo-a segundo suas influências pessoais específicas.

Azul e Sabiaguaba são dois curtas dos Irmãos Pretti de que já falei por aqui. Revendo Sabiaguaba na tela grande, é incrível a influência de João Cesar Monteiro, o humor escrachado (mas o público não ri), e a incrível auto-crítica da posição desses estrangeiros preguiçosos cariocas no interior do Nordeste. Pouquíssimo preocupado em seguir linhas de tendências, em fazer “filmes fechados”, Sabiaguaba é um “viver a vida” mas com um imenso rigor que fascina e perturba quem se dedica a estudar e conhecer esse negócio chamado cinema. Em seu mistério, pode ser associado apenas aos filmes de Apichatpong.

Num certo sentido, é a mesma proposta de Mar e Cá, filme coletivo da UFF. Um filme-vivência da juventude, em que o processo de realização está mais ligado a uma experiência sensorial de registrar momentos e um clima particular de estar juntos e estar a sós. Nesses momentos de ambiência o filme cresce (um casal sentado no sofá, o belo plano final…) e em outros se perde (o diálogo sobre escovar os dentes), e se num todo há a falta de uma organicidade, de qualquer forma é um singelo trabalho que nos coloca questões sobre o fazer cinematográfico.

Mais radicais e orgânicos são os dois vídeos de Louise Ganz, representando a beleza, a ousadia e o diálogo com as artes plásticas típico dos videos mineiros. Para quem teve a oportunidade de conhecer o trabalho anterior de Ganz, os dois vídeos apresentados na Mostra mostram uma continuidade dos temas de sempre da diretora (sua quase obsessão pela água, bonecas e demarcações de aposentos), ao mesmo tempo que apontam para novos caminhos, novas possibilidades. Em Sob as mãos inertes as pedras suam, uma pedra se transforma em água, e é tudo o que o trabalho de Ganz persegue: ao invés da concretude física do lugar (as ruínas da casa abandonada), resta a poesia imaterial da memória (a água). Demarca-se um lugar que não mais existe mas que continua existindo: através de rastros e de restos, Ganz vai construindo sua poesia particular, numa geografia íntima de um passado perdido e de um presente partido. Em Água boa, sono bom, os espaços e os tempos formam um jogo livre entre passado, presente e futuro, quando três gerações (mãe, autora e filho) se entrecruzam num lugar estranho em torno de estilhaços de uma memória.

Outro trabalho de destaque é Wild Life, de Wagner Morales. Ele lembra vagamente o Ocidente, de Leo Sette, ao registrar a reação de passageiros num veículo em movimento. No caso de Morales, um grupo de turistas vendo as geleiras da Patagônia, ou coisa do tipo. Esse simples registro, no entanto, recebe novos significados a partir da montagem e especialmente do som, instaurando movimentos de suspense e de suspensão que tornam esse mero registro quase um filme narrativo, de tons e timbres intercalados com enorme consciência por parte da direção. Seu inusitado surge a partir de uma consciência de forma, e de um diálogo sutil entre interior e exterior, ponto de vista, som e imagem, e convenções (falsas) de um certo cinema de gênero.

Um olhar sobre o universo dos jovens com um diálogo íntimo com o cinema contemporâneo (de Nobuhiro Suwa a Claire Denis) pode ser visto em “…”, de Juliano Gomes e Leo Bittencourt. Desse filme, já falei bastante antes, por ocasião da Mostra do Filme Livre 2007.
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O relato sobre Tiradentes conitua se minha saúde, o Carnaval e a correria da vida me permitirem…
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Comentários

Anônimo disse…
Olha, Cara. Realmente o Ceará esteve bem representado em Tiradentes. Será que você não discriminou o vídeo Doce Amargo Infinito de Cássio Araújo, que não só tem uma "curiosa" participação de seu amigo Ivo, como uma inocencia, uma simplicidade em mostrar tão sutilmente distintos sentimentos em cima de um mesmo fato? Acho que o vídeo não deve ser excluido do conjunto de obras cearenses, da maneira que voce fez. Eu acho um dos vídeos mais lindos que já vi. Ví em Santos, quando venceu em melhor direção. diretor e sei de outros premio incluindo melhor ficção, atriz a claro a fotografia do grande Ivo.
Cinecasulófilo disse…
Prezado Anônimo,
Viva os blogs e a sua possibilidade da discordância. Essa é a sua visão! Fica aí o seu registro. Abraço e via o cinema cearense!

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