Jogo de Cena

por incrível que pareça fiquei semanas para escrever algo sobre o novo filme do Coutinho e simplesmente não conseguia. Eu gosto de escrever tudo de uma vez, num só ímpeto, mas dessa vez simplesmente eu não consegui. Não queria escrever aquelas coisas de sempre, os "sensos-comuns" que tanto já se falou sobre o filme, porque eu acho que isso não esclarece sobre o que esse filme realmente é. Mas depois de um tempo, desisti, vai aqui o que consegui rascunhar sobre o filme.

Jogo de Cena
De Eduardo Coutinho
Espaço ex-Unibanco dom 21hs
** ½

Sinto que falar do novo filme do mestre Eduardo Coutinho é um pouco como falar de nós mesmos. Em que sentido, já que Jogo de Cena é um filme que fala sobre o papel da representação? Ora, em diversos sentidos, especialmente porque para os filmes de Coutinho, as pessoas ganham interesse não exatamente quando “são” mas quando “narram o que são”. É no ato de “narrar a si mesmas” que essas pessoas se transformam em histórias de si, que vão além ou aquém do que são, tornam-se coisa outra, ou coisa mesma mas vista de outra forma. Daí que as questões que os filmes recentes de Coutinho cruzam são questões de linguagem, mas não apenas propriamente de linguagem: a linguagem na verdade revela/desvela as potencialidades mas também os limites de cada um.

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Num palco de um teatro, uma mulher fala sobre acontecimentos de sua vida. Sabemos desses acontecimentos por meio desse relato. Esses acontecimentos, portanto, existem para nós, enquanto são narrados por essa pessoa. Isto é, esses acontecimentos não “acontecem”, porque seria impossível; há ao invés disso uma representação oral desses acontecimentos.

Em seguida, vem uma atriz e tenta reconstituir esses relatos. “Relatos” que, como vimos, são representações de “acontecimentos”. Ou seja, as atrizes fazem uma representação da representação. Há um conflito: não sabemos ao certo se o objetivo das atrizes é repetir (imitar) ou recriar (criar a partir de). A diferença entre ambos fala sobre o papel do ator e da representação. Mas não é propriamente sobre isso o que digo.

Até que ponto a representação das pessoas que passaram pelas situações nos traz uma sensação de verdade? Até que ponto a representação das atrizes que não passaram pelas situações pode nos trazer menos verdade mas pode nos emocionar mais?

* * *

Por outro lado, temos o cinema, temos o artifício do registro desses relatos, que por si só já modificam a “autenticidade” desse relato. Há o Coutinho entrevistando e há, além dele, uma câmera registrando essa entrevista. Ou seja, Jogo de Cena é sobre seu dispositivo. É um filme sobre a validade desse mesmo dispositivo, é sobre o que é esse dispositivo. Em Salve o Cinema, Makhmalbaff nos colocou alguns pontos, o cinema iraniano dos anos noventa nos colocou alguns pontos, mas desta vez Coutinho foi além: é um filme cuja natureza é sua própria natureza.

Ao mesmo tempo, é um filme sobre mulheres e é um filme sobre a emoção. Os relatos são femininos e emotivos. O que é a emoção, como ela faz parte do cinema, e como ela é transmitida para o espectador?

Talvez a emoção seja um mistério. Como o cinema.

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