X – A MARCA DA MORTE

X – A MARCA DA MORTE

X

de Ti West

2022

 


       Somente agora, com muito atraso, vi o tão comentado X, de Ti West, procurando me atualizar um pouco, na medida do possível, com filmes de um circuito mais comercial (ainda que eu tenha a consciência de que X é um filme independente de baixo orçamento, ou seja, uma espécie de filme B cult possível pós-2010), e especialmente levando em conta as análises de muitos especialistas de que o filme oxigenaria certas convenções de gênero do terror slasher.

               Confesso que, em relação a esse último ponto, vi o filme com certa frustração, porque me pareceu bastante aderente às estruturas e estratégias mais convencionais do gênero, sem grandes novidades. Inclusive, achei previsíveis e sem grande impacto visual as sucessivas cenas de morte ao longo do filme. Algumas cenas de exceção se destacam nesse contexto, como a de um jacaré que quase abocanha a protagonista em um mergulho no lago.

Ainda assim, tenho algumas observações sobre alguns pontos que me despertaram a atenção ou a curiosidade desse filme, para além de sua suposta originalidade em termos de suas convenções de gênero.

               Trata-se de um filme dentro do filme, uma vez que mostra jovens que alugam uma fazenda isolada no interior do Texas para fazer um filme pornô, e X é um filme de época que se passa em 1979. Nisso, o primeiro plano do filme começa num enquadramento que nos parece o típico formato 4x3 (que será usado posteriormente quando o filme mostra o filme-dentro-do-filme, isto é, as cenas filmadas pelos jovens). Mas há um dolly-in que nos faz perceber que na verdade são as barras de uma janela, e, à medida que a câmera se aproxima do exterior para fora da janela, percebemos que na verdade trata-se de um scope. Esse movimento de câmera entre o interior e o exterior e a falsa mudança da relação de aspecto me pareceu um dos mais belos gestos do filme (um movimento quase estruturalista) que ressignifica vários gestos que o filme propõe.

               O próprio título X nos remete à classificação indicativa, mas não do filme-dentro-do-filme (que seria um XXX), mas do próprio filme que estamos vendo. X é também, antes de uma letra, um sinal gráfico, mas que não possui uma correlação direta com o filme, tal qual, por exemplo, M, de Fritz Lang, em que a letra significa uma marca com a letra no casaco do assassino.

Esse gesto também me lembra os guardas no final do filme, que acham a câmera, e o xerife diz que os jovens estão a fazer um filme. Esses movimentos expressam uma profunda autoconsciência e reflexividade sobre a noção de que, em última instância, tudo é um filme, tudo é uma brincadeira, estamos todos a filmar, e não há nada de real ali.

Nesse contexto, o filme desfila um carrossel de referências ao próprio cinema, de modo que o filme pode ser visto como uma singela homenagem a slashers dos anos 1970, em especial O massacre da serra elétrica.

Devemos também lembrar que o filme começa num camarim, em que a protagonista se prepara para sua apresentação, e que seu objetivo é fazer sucesso. O filme então se desdobra como se fosse a grande apresentação dessa atriz em cena, em busca de seu lugar ao sol. Acima de tudo, ela precisa ser uma sobrevivente.

Foi muito comentada a relação de oposição entre jovens e velhos ao longo do filme. Os jovens que filmam o pornô representariam a liberdade das convenções, e os velhos sofrem a repressão da sexualidade, assombrados pelas palavras do pastor na televisão. O filme teria um enfoque interessante que contrapõe pulsão de morte com pulsão de vida, e os assassinatos em série expressam a tentativa de sublimação da repressão da sexualidade expressa por certas estruturas sociais, que os jovens, por desafiá-las, devem ser exterminados.

Mas, ao mesmo tempo, fico pensando não tanto na oposição mas na aproximação entre os jovens e os velhos, de modo que são duplos, projeções de uma mesma matriz. E, para isso, é marcante a relação entre as duas personagens curiosamente representadas pela mesma atriz: Mia Groth, que curiosamente é neta de nossa grande Maria Gladys. Essas duas possuem uma relação de duplo fartamente exploradas no filme, desde que elas tomam uma limonada juntas até o desfecho de confronto final. Pearl (a “Groth velha”, com quilos de maquiagem) diz a Maxine (a Groth jovem) que ela também se tornará assim como ela: a decadência (se é que podemos usar o termo) parece ser o destino não apenas físico dos jovens mas daqueles que aspiram ao sucesso no American way of life e fracassam. Pearl alerta mas a jovem “passa por cima” desse aviso e segue seu próprio caminho. Se irá conseguir ou não, não sabemos.

A relação do duplo ganha proporções extremas numa das cenas mais impactantes de todo o filme. Quando a velha se deita na cama com seu duplo-jovem e a acaricia, passando suas mãos sujas de sangue no corpo apetitoso da jovem que dorme. Resquício do surrealismo? Herança do cinema? O duplo, o sono, os fantasmas – cena a permanecer na memória. Num outro momento, Pearl, ao ver seu duplo jovem galopando, reascende sua chama sexual. Quando finalmente consegue consumi-la com seu marido, é Maxine que está ali embaixo da cama, até que sai rastejando por baixo deles, quase como um parto macunaímico.

Para além das convenções do gênero, que confesso não ter embarcado muito, alguns momentos e relações de X permaneceram ressoando comigo após a projeção – e para que mais, afinal, serve um filme?

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