NOMADLAND
NOMADLAND
(ou uma
certa tendência do “equilíbrio conciliatório” no cinema social dos últimos
anos)
(esse texto contém spoilers, deve ser lido apenas após ter visto o filme)
Nesse texto, vou procurar expressar a minha admiração e também algumas reservas em relação a NOMADLAND e a filmes que se afiliam a uma certa linha, a uma certa tendência do cinema internacional e também brasileiro dos últimos anos.
Enquanto a
indústria cinematográfica tem concentrado sua renda em filmes de grande espetáculo
midiático em torno de super-heróis de ações espetaculares em 3D, é interessante
vermos um filme como NOMADLAND dominando os cenários de premiação
internacional, com o prêmio máximo em Veneza seguido da provável premiação no
Oscar, e entrando em grande parte das listas de melhores do ano elaborado por
críticos e veículos especializados. A meu ver, essas premiações não devem ser
romantizadas, mas servem especialmente para dar visibilidade a um filme que
traz um conjunto de questões sobre os nossos modos de ser diante do mundo, e também
sobre a linguagem do cinema. Ou seja, meu intuito não é meramente legitimar
esse circuito, mas é preciso perceber que esse circuito fará com que o filme
seja visto e debatido por plateias de todo o mundo.
De todo
modo, NOMADLAND resgata o espírito do cinema independente, numa tradição
humanista. O filme aborda a vida de uma mulher de 60 anos que decidiu viver em
trânsito pelo interior dos EUA, morando sozinha numa van e tendo trabalhos
ocasionais. Solidão ou liberdade? Escolha pessoal (viver um modo de vida
alternativo aos padrões da tradição-família-propriedade) ou imposição social
(as contradições do capitalismo que veem o ser humano como uma mera máquina, como
uma força de trabalho que depois de seu ciclo de vida útil deve ser
descartado)?
Assim, o
filme trata de questões atuais e urgentes do nosso mundo. Seus principais temas
são o trabalho e a moradia, e em paralelo, a questão da terceira idade. Quanto
à moradia, uma frase-síntese do filme é quando a protagonista afirma que é uma
houseless (sem casa) e não homeless (sem lar). Seu lar é sua van, que não
precisa ser uma casa. Ao mesmo tempo, ela tem trabalhos ocasionais precários,
de regime temporário, sem qualificação. Ao mesmo tempo, essa parece ser uma
escolha, visto que a protagonista poderia viver na casa da irmã, e tinha um
trabalho como professora. Uma escolha individual, em viver uma vida diferente
dos padrões da sociedade americana. Ao mesmo tempo, há uma enorme amargura, uma
melancolia na expressão de McDormand: ela não é uma “hippie feliz que vive em
harmonia com a natureza e com um monte de amigos eventuais”. Ainda que seja uma
escolha própria, McDormand vive assim porque algo lhe foi arrancado: seu antigo
equilíbrio foi rompido com a morte de seu marido e o fechamento da fábrica na
cidade onde viviam. Assim como a protagonista, outros personagens têm os seus
motivos para viver de forma nômade. Assim, o filme sugere que, no fundo, essa
não é bem uma opção, mas um caminho induzido pelo sistema. Aos sessenta anos,
muitos americanos são jogados à margem da sociedade capitalista, sem família,
sem casa, sem um emprego digno.
Para
enfatizar esse ponto, o filme, baseado numa obra literária de não ficção, utiliza
um conjunto de elementos documentais: a importância das paisagens naturais, um
desejo quase etnográfico de perscrutar modos de ser diferentes dos mais
habituais, a incorporação de situações vivas e de personagens reais (atores não
profissionais).
A partir
desse desejo documental, o filme constrói uma estrutura ficcional, criando uma
dramaturgia narrativa, em torno das ideias de transparência e identificação. Por
meio do caminho de uma personagem protagonista, representada por uma conhecida
atriz de um certo star system independente (Frances McDormand já chegou a
receber o Oscar de Melhor Atriz), somos levados a um mergulho psicológico nos
dilemas dessa personagem: os problemas com a família, a dor da morte do marido,
etc. Apesar da solidão, chegamos a quase compreender os motivos pelos quais McDormand
se recusa a formar uma nova família com um novo companheiro, apesar de bem
acolhida – o que considero o ápice da narrativa, isto é, a principal conclusão
moral da história. Nada substituirá na protagonista o vazio para o qual ela foi
empurrada, diante do que era seu e lhe foi arrancado, e o eterno deambular
solitário pela estrada parece ser a única forma possível de manter um certo
equilíbrio e conviver com essa dor.
Ou seja, de
um lado, NOMADLAND permite revelar um lado pouco explorado de nossa sociedade,
nos dando a possibilidade de ter acesso a outros modos de ser, e de refletir
sobre algumas das nossas contradições enquanto sociedade. O filme incorpora
essa proposta combinando ficção e documentário. Ao mesmo tempo, o filme
equilibra os aspectos sociológicos e psicológicos, evitando as conclusões mais
duras. Assim, de certo ponto, o filme promove um retrato romanceado das
relações de trabalho e das condições da terceira idade. O filme em alguns
momentos sugere as dificuldades dessa opção (o carro pode quebrar no meio da
estrada sem acesso a socorro, os problemas de estacionamento e aquecimento, ou
mesmo as condições de trabalho adversas, como na colheita de beterrabas). Ao
mesmo tempo, o trabalho no armazém na Amazon parece ser um momento de alívio e
de encontro na dura rotina da protagonista. NOMADLAND nos faz refletir sobre os
impasses do capitalismo em nossa sociedade mas a boa aceitação do filme em um
público médio é também efeito das estratégias da realização que evita os
embates mais duros ou uma crítica mais frontal, sugerindo as dificuldades mas
permeando a dramaturgia com um filme de forte identificação emocional quanto às
questões psicológicas da personagem encaixadas num contexto social, até de
certa forma romanceando a repercussão de suas opções. Entendo que essa opção
equilibrada entre a sociologia e a psicologia, entremeando recursos da
linguagem ficcional e documental, utilizando modos de produção e financiamento
do cinema independente mas atingindo um prestígio artístico que o leva para
audiências maiores, se reflete por meio de um filme de aparência política que
nos desperta para outros modos de ser mas, ao mesmo tempo, apresenta conflitos
domesticados. Se o filme não é maniqueísta, dividindo a sociedade entre
opressores e oprimidos com sintomas sociais simplórios, promovendo, em vez
disso, um mergulho em camadas mais complexas do reflexo do caráter predatório
do sistema capitalista nos modos de ser, ao mesmo tempo NOMADLAND parece
confortável flanando por uma certa superfície, contentando-se em provocar uma certa
angústia controlada no espectador de tendências socializantes. Ou seja,
NOMADLAND não é um LA LIBERTAD, de Lisandro Alonso, em que acompanhamos os modos
de ser de um personagem (um não ator profissional) que vive na selva, mas
rejeitando radicalmente os condicionantes sociológicos ou as chaves de
identificação psicológicas, propondo uma narratividade diluída, outra percepção
do tempo e do espaço, uma expressividade dura. A dureza da expressão de
McDormand em NOMADLAND é cuidadosamente calculada para gerar efeitos emotivos
no espectador, num formato adequado para a indicação ao Oscar.
Essa me
parece uma certa tendência de um cinema social nos últimos anos, que possui um
conjunto de filmes brasileiros, que se inserem numa espécie de world cinema que
valoriza esse tipo de abordagem. Entre eles, relaciono filmes como Arábia,
Temporada, A febre, Mormaço, Los silencios, que, em maior ou menos grau, com
mais ou menos sucesso, compartilham dessas estratégias. É preciso destacar as
conquistas desse conjunto de filmes mas também expor certas ressalvas.
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