AS DUAS IRENES

AS DUAS IRENES
de Fábio Meira





Enquanto o Festival de Brasília 2017 clama por filmes de militância urgente, que gritem a plenos pulmões a grave crise política e social que vivemos, fico pensando no lugar de um filme como AS DUAS IRENES. Fico pensando que o cinema, a arte, possui muitas maneiras de expressar um sentimento, e que o artista também pode refletir sobre o estado de coisas do mundo com um certo distanciamento. A princípio, vendo a superfície do filme, poderíamos concluir que AS DUAS IRENES é um filme anacrônico, deslocado de seu tempo, pela sua adesão a uma certa transparência, a um certo classicismo. No entanto, é preciso – como diria Agamben, como diria tanta gente – se deslocar (é preciso desconfiar) do imediatismo do nosso tempo histórico, e nos permitir um mergulho em nosso próprio imaginário. O suposto classicismo de AS DUAS IRENES é como o próprio filme: um mergulho sob camadas de aparências ilusórias, refletindo a natureza das relações daquela própria família. Vejo AS DUAS IRENES como um filme de um diretor goiano exilado em São Paulo, e que talvez só possa falar do que seja Goiás a partir dessa mesma distância, essa distância que faz tudo ser cada vez mais presente e mais palpável.

Na aparência, há uma serenidade em AS DUAS IRENES que rima com a serenidade dessa mesma família. Mas lembro aqui da linda sentença de Mizoguchi ao falar do cinema de Naruse. Ele dizia que os filmes de Naruse são como um rio que, à primeira impressão, são calmos, mas que, somente ao entrarmos nele, podemos perceber que, sob sua superfície, as águas são extremamente turbulentas. Assim é o filme de Fábio Meira.

Em AS DUAS IRENES sempre há algo que não pode ser dito. E se não pode ser dito, isso acaba sendo expresso de forma sutil pelos silêncios e pelos vazios. Um filme sobre a repressão das personagens femininas e ao mesmo tempo sobre sua liberdade. Um filme sobre as mulheres que sempre guardam alguma dor mas ainda assim permanecem espiando. A protagonista de AS DUAS IRENES poderia até ser uma MOUCHETTE, mas sua origem social, de classe média alta, a faz testemunha de uma crise de valores sobre a qual o filme acompanha com um distanciamento. Um filme que se expressa por um tom que não é discursivo mas que utiliza de forma sábia e discreta os artifícios da linguagem cinematográfica, como os exemplos que passo a postar a seguir, fotografados de forma sorrateira da própria tela do cinema.

Sabemos desde a Cahiers du Cinéma que o desafio de um diretor é imprimir um tom peculiar a uma narrativa. É curioso ver Fábio Meira, mais conhecido como roteirista (apesar de também possuir uma trajetória como diretor), realizar "um filme de diretor". Pois o roteiro me parece de importância secundária em relação ao tom peculiar que o diretor consegue imprimir à narrativa. Em como a paisagem, a natureza, os silêncios, os enquadramentos, os pequenos gestos falam tanto sobre o que é esse filme. A forma como Irene gira o pescoço; o modo como ela pega uma costelinha com a mão; em como ela ajeita o casaco. Em como ela sobe numa rocha com o céu ao fundo e o vento bate nas árvores. Em como ela se escora nas paredes descascadas do lado de fora do cinema enquanto conversa com sua meia-irmã. São nesses pequenos gestos que nos passam despercebidos que podemos perceber a singeleza de Fábio Meira ao optar pelo uso discreto mas extremamente consciente e delicado dos recursos de mise en scène.

A relação de amor e ódio ao pai. A traição. Essa palavra que não pode ser dita; esse passo que não pode ser dado. Todas as convenções da sociedade que precisam ser respeitadas. Às vezes, achamos até que estamos num filme de Guiguet. Delicado, o diretor nos faz ver as contradições de um modelo patriarcal, mas ao mesmo tempo ele tem cuidado de não julgar e antever o carinho pelas relações de família, o pertencimento em relação ao meio e à natureza. Um filme do exílio: profundo desejo de condenar o conservadorismo mas profunda atenção à natureza do afeto que ainda assim se instala. O diretor não julga: a personagem descobre as contradições e tenta se posicionar diante disso mas não pode fugir dela mesma.

Mas se AS DUAS IRENES pode parecer um filme suave e classicista, existe uma violência que irrompe cada vez mais rumo ao final, e que no fundo já está presente desde o prólogo do filme. Essa troca de identidade; essas duas famílias que talvez até saibam da existência uma da outra, mas que não podem se tocar, se cruzar. Amadurecer, ser adulta, para Irene (qual delas?), não é simplesmente aprender a conviver calada, aprender os bons modos e silenciar, como se o outro lado não existisse, mas é poder, acima de tudo, abrir essa porta e cruzar essa linha invisível que separa os dois mundos. É tão bonito e delicado o plano final, quando ficamos nesse vazio instaurado pela saída de Irene.

Fábio Meira dialoga com uma dramaturgia do comum que tem no cinema brasileiro raízes como os filmes de Prates Correia ou mesmo de Suzana Amaral. Mas há uma marca própria, há uma violência muito presente que não mascara essa dor. São nesses momentos que o suposto classicismo do filme se espatifa (como a vidraça da fachada do cinema ao contato de uma pedra) e vemos aflorar, por baixo dessa pele, sua sensibilidade. Fico pensando, de maneira inesperada, que, por trás de sua transparência e de sua delicadeza, AS DUAS IRENES seja um filme que fale muito mais sobre o seu tempo do que a princípio poderíamos imaginar, e que talvez demoremos algum tempo para percebê-lo. Pois AS DUAS IRENES não é apenas um filme de silêncios, sobre a naturalização dos silêncios, ou ainda, não é apenas um filme sobre a repressão das mulheres interioranas, mas é também sobre a liberdade (pois nenhum filme sobre a repressão faz sentido se nele não couber a liberdade), que é exercida não apenas em seus imaginários mas também nos seus corpos e ações, começando pequeno, em pequenos gestos de descoberta, de dentro para fora, relacionando-se com a natureza, até desabrochar em direção ao mundo.


a forma delicada com o diretor utiliza a cor (o filme tem uma fotografia deslumbrante) combinada com paletas de cor bastante sutis está expressa na sua quintessência nessa bela cena, em que vemos o constrangimento de Irene ao ir ao cinema e ter um contato com sua meia-irmã. Vejam a importância das paredes descascadas. Vejam como a luz toca de maneira discreta mas expressiva o corpo de Irene quando ela finalmente consegue falar com sua nova amiga. Vejam a paleta de cores, integrando Irene no espaço, e diferenciando as duas irmãs. Vejam como Irene se acomoda num canto de parede, num uso discreto, elegante e simples de seu desconforto.


 Irene luta por sua liberdade mas sofre por isso. Vejam como o diretor escolheu um enquadramento, com a personagem enviesada no canto de quadro, e como a própria geografia da escada é usada de forma criativa para expressar a desorientação psicológica da personagem. As paredes descascadas e úmidas. A paleta de cores entre o branco desbotado e o verde timidamente libertário. 


A natureza é um dos elementos mais presente de todo o filme. O vento, os silêncios, os pequenos momentos subterrâneos, que podem ser percebidos quando o vento balança a folha das árovres.



o sensualismo de AS DUAS IRENES pode ser visto em diversas cenas pela forma como as duas jovens lidam com a descoberta do corpo e da própria sexualidade, combinadas com as cenas da natureza. Mas para além disso há uma ideia do prazer. Esse prazer que pode ser experienciado sem culpa, nas pequenas coisas: prova mais deliciosa está na forma como Irene come a costelinha com as mãos e saboreia os beiços. Ela está desconfortável, pois pediu o prato para estar no lugar de poder que seu pai estaria. Mas ao deixar o garfo e faca e comer a iguaria com as mãos, ela esquece por um momento esse papel social e se deleita com esse pequeno prazer. A forma como o diretor encontrou para encenar esse breve momento é notável.
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