MAIS DO QUE EU POSSA ME RECONHECER
Barbara Cariry me convidou para escrever um texto sobre o novo filme de Allan Ribeiro MAIS DO QUE EU POSSA ME RECONHECER, para o catálogo da Mostra Outros Cinemas, que foi realizada na Caixa Cultural Fortaleza. O filme foi exibido na abertura do evento (04/05), seguido de debate com a presença do realizador e mediado por mim.
Um encontro improvável
Mais do que eu possa me reconhecer é o
segundo longa-metragem do carioca Allan Ribeiro. Embora concluído após Esse amor que nos consome, na verdade
trata-se de um projeto anterior, filmado em intensos quatro dias em 2009, mas
só concluído em 2015. É possível, ainda asssim, traçar alguns paralelos entre
eles: são sobre o cotidiano de artistas em suas "casas-ateliê",
concentrando-se mais em pequenos aspectos do seu dia-a-dia do que propriamente
seu processo de criação. Mesclam ficção e documentário para compor
organicamente uma relação entre criação e vida, com base numa dramaturgia do
comum.
A
princípio, poderíamos pensá-lo como um documentário sobre o pintor Darel
Valença Lins. No entanto, o filme escapa completamente ao informativo: há apenas
esparsos dados biográficos sobre o pintor, assim como comentários críticos
sobre sua obra ou sobre seu processo de criação. Não há depoimentos nem textos
de especialistas sobre a contribuição artística do pintor.
Uma equipe
bastante reduzida (o próprio Allan, que empunha a câmera, e Douglas Soares, o
som) vai à casa do artista, onde todo o filme se desenrola. Vemos o artista em
sua casa, onde ele cria e vive. Vive só, aparentemente não recebe visitas. Não
vemos ou ouvimos ninguém a não ser o artista ou o próprio realizador. Os únicos
contatos de Darel com outras pessoas são uma chamada telefônica ou alguém que
lhe entrega cartas.
Ainda, não
se trata de um filme observacional sobre a rotina do artista, como, por
exemplo, o silencioso e lento A casa de
Sandro, de Gustavo Beck. O que temos, então? Do que se trata o filme?
Parece-me
que Mais do que eu possa me reconhecer
é justamente sobre o encontro entre Allan e Darel. Antes de um filme sobre a
biografia de Darel ou sobre seu processo de criação, é um filme sobre esse
encontro improvável entre dois artistas que possuem em comum um gosto incomum
pela imagem.
Seu prólogo
já se apresenta como uma carta de intenções. O filme começa com um encontro
entre os dois artistas. Mas mais do que encontro entre eles, há um encontro
entre imagens. A câmera de Allan filma a câmera de Darel, que também o filma.
Em seguida, ainda no mesmo plano filmado por Allan, percebemos que Darel para
de filmar, e vemos, pelo visor de sua câmera, as imagens que Allan filmava.
Esse campo-contracampo estabelece a dinâmica do filme, relação entre
proximidade e distanciamento sobre o qual todo o filme irá se basear. Darel faz
uma pergunta, mas Allan não responde, provavelmente por estar concentrado no
processo de gravação das imagens. Ao final desse plano, há, no entanto, uma
solução curiosa por Darel, que marca sua diferença em relação a Allan: ele simplesmente
apaga as imagens de Allan que acabou de mostrar. Essas imagens
"descartáveis" ficariam apenas na memória de Darel, mas agora, também
na de Allan, e, por extensão, nas nossas.
Num único
plano, esse prólogo marca as estratégias que serão desenvolvidas em todo o
filme, nessa relação de proximidade e distância entre os dois artistas. O
desejo de Allan de se aproximar de Darel, mas, ao mesmo tempo, mantendo uma
certa distância. Esse distanciamento é acentuado por dois fatos. O primeiro é o
de Darel não escutar bem o que Allan lhe fala, de modo que seu mais típico
complemento às perguntas de Allan é a expressão "hein?". O segundo é
o próprio fato de que, como Allan opera a câmera, ele não consegue interagir de
forma totalmente espontânea, pois precisa se manter concentrado em filmar.
A câmera
claramente coloca uma fronteira, um obstáculo para a melhor interação entre
ambos, mas ao mesmo tempo se trata de um objeto de aproximação. O filme é o que
de fato aproxima Allan a Darel, mais do que uma relação de amizade ou de
interesses em comum.
Há algo, no
entanto, que os liga. Percebemos que Darel dedica boa parte de seu tempo às
imagens em movimento: não apenas pelo acervo de DVDs aos quais ele assiste e faz
cópias, num gravador de DVD muito semelhante a um aparelho de VHS, mas também
por ele próprio filmar. Darel é um cineasta ocasional, que também realiza seus
filmes, a maior parte deles realizado sozinho dentro de sua própria casa, com
uma câmera de vídeo portátil, quase amadora. Não encontrei registros de
exibições públicas dos vídeos de Darel. São muitos realizados nos últimos anos,
mas parece que Darel os realiza simplesmente por uma necessidade pessoal de
criação, sem a preocupação de exibi-los ou de se tornar um "cineasta
profissional". Torna-se quase como um "hobby", até porque,
aparentemente, seus trabalhos em vídeo se diferenciam de suas pinturas ou
gravuras. Talvez apenas aparentemente, pois, como o próprio Darel afirma, sem
titubear, o principal mote de seus vídeos é a sua solidão.
Ao se
deparar com Darel, Allan não romantiza o artista. Darel permanece criando,
esperando a morte chegar. Quando virá, não importa, ele continua criando mesmo
assim, mesmo sem ter o reconhecimento nem a visibilidade desses trabalhos,
muitos dos quais permanecem inacabados ou com o sugetivo título de
"aleatório". Criar, para Darel, mais do que cálculo para entrar para "o
cânone da arte", parece ser, acima de tudo, uma forma de permanecer vivo.
Não sei se, pensando assim, ele se parece ou se distancia de Allan.
Ao longo do
filme, somos apresentados a essas imagens filmadas por Darel, ao mesmo tempo em
que evidentemente vemos as imagens filmadas por Allan. No entanto, à medida que
o filme avança, essas imagens são combinadas de tal forma no processo de
montagem que começamos a ter dificuldade de precisar se são de Darel ou de
Allan. A dificuldade, no entanto, é só inicial. Após um tempo de contato com
essas imagens, conseguimos definir sua origem, pois o enquadramento, o
movimento de câmera, sua precisão técnica, e até mesmo seus interesses são
bastante distintos. Mas o que importa aqui não é precisar se essas imagens são
de Allan ou de Darel, mas em como o filme desenvolve uma dramaturgia em que o
encontro entre os dois artistas vai se aprofundando sobretudo por meio das
imagens. O filme, portanto, não é exatamente sobre o encontro (ou a amizade)
entre Allan e Darel, mas em como essa aproximação, que só é possível pois um
filme está sendo feito, se desenvolve por meio das imagens, ou ainda, trata-se
de um encontro entre olhares.
Encontro
partido, pois as diferenças entre Allan e Darel são muito visíveis, mas um
encontro entre artistas: um encontro por
causa da imagem (porque um filme está sendo feito) e por meio da imagem (os filmes de ambos se encontram).
Ao final do
filme, há a síntese dessa estratégia de encontros: as imagens dos dois
realizadores começam a se aproximar, até que se chocam. Allan começa a fazer
intervenções nas imagens produzidas por Darel: altera sua velocidade, sobrepõe
outra trilha sonora. Allan não tem pudor de manter as imagens de Darel
intocadas. Quando ele interage com elas e as transforma, surge algo que não é a
imagem de Darel nem mesmo a imagem de Allan: é uma terceira imagem, um caminho
outro que só foi possível a partir desse encontro. Esse encontro por causa da
imagem e por meio da imagem acaba por contaminar a própria imagem, ou seja, ele
afinal se expressa na própria materialidade, na tessitura da imagem que compõe a
sequência final do filme. É como se Allan desse "uma pincelada de
vídeo" em um dos "quadros fílmicos aleatórios" de Darel, e a
própria forma "aleatória" com que Allan imprime essa
"pincelada" revela as implicações desse encontro, como um arco em
relação à primeira sequência do filme. Enquanto no início esse encontro era
entre câmeras e olhares, agora no final, ele acontece através da própria imagem.
O
mais bonito é que ele acontece no único momento em que Darel filma fora de sua
grande, imponente e solitária casa, e encontra a rua, o mundo, o movimento das
coisas. O filme de Allan, é, portanto, sobre esse movimento, sobre esse desejo
discreto de que as coisas (ou os olhares) possam afinal se mover por meio de um encontro improvável.
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