autoretrato e o movimento
Caros,
estou aqui em Fortaleza participando da Bienal de Danca, no Encontro Terceira Margem.
Esta sendo bem interessante para pensar as relacoes entre danca, corpo e imagem.
Num dos debates, li um breve texto em que faco breves reflexoes sobre o movimento, relacionado ao cinema que venho buscando. O texto tem tres 'movimentos': uma tese, uma antitese, e uma sintese. Eis o texto:
1)
No meu curta “Auto-Retrato do Artista Durante a Gestação”, no longo plano final que encerra o video, há três movimentos. O primeiro é o de me despir e tomar banho; o segundo, o de me olhar no espelho; o terceiro, de me sentar e aguardar. Esse plano, de mais de três minutos com câmera fixa, em geral choca, irrita e incomoda as pessoas, que julgam ser uma “exposição egocêntrica”, “lentidão desnecessária”, “caseiro, precário demais”. O primeiro movimento, de “expor-me nu”, “tomando um banho” talvez seja a expressão mais genuína e mais corajosa dos movimentos pretendidos pelo meu cinema. Exposição difícil, dolorosa, contrária à minha natureza da parcimônia e da discrição. Exposição difícil mas necessária, posto que o cinema nada mais é que “depuração”, “despojamento”, “desnudamento”. É curioso como as pessoas reclamam que este é um plano “muito sem ação”, “muito lento”, “entediante”, em que “nada acontece de relevante”, porque para mim nesse plano de três minutos de câmera estática, há todo um arco de movimento extremamente obtuso e grave.
Isto me leva a refletir sobre a natureza do movimento no cinema e na vida. As pessoas reclamam que o plano final do “auto-retrato” é “sem movimento”, “sem ação”, porque elas acham que “um filme movimentado” é um filme do Batman, em que o protagonista super-herói escala prédios, salva pessoas, corre e voa pelas ruas, arquiteta planos, faz malabarismos, ou seja, tira o nosso fôlego pela quantidade de tarefas que executa ao longo do filme. É curioso mas ao final da sessão eu geralmente me queixo que nesse tipo de filme não houve nenhuma ação, nenhum movimento. É como quando uma pessoa comenta comigo que hoje fez muitas coisas, “consertou seu celular que estava quebrado, conseguiu resolver aquela pendência no banco relativa àquele cheque que não tinha sido depositado, trocou a bolsa na loja pois com uma semana de uso ela tinha descosturado na alça, avisou à companhia de gás que a conta veio errada pois o marcador comum do prédio tinha apontado outro número”, e eu replico “nossa, você ficou todo o dia correndo sem sair do lugar?”. Cada vez mais o mundo de hoje nos empurra para um conjunto maior de tarefas, e no final das contas percebemos que não fizemos nada, não saímos do lugar. Durante dias, meses, anos, vidas a fio.
As pessoas em geral reclamam do meu cinema porque ele não tem movimento, porque os planos são muito longos e nada de importante acontece. Porque quando elas saem de casa para ir ao cinema elas querem que algo de importante aconteça nos filmes, que muita coisa aconteça. Em geral não percebem que nos filmes que vêem nada acontece de verdade. Acontece muita coisa, mas no fundo no fundo nada acontece. Como talvez ocorra na própria vida delas e que elas não se dão conta.
Acredito que nesse plano final do auto-retrato haja um longo, expressivo e grave movimento. Assim como acredito que o cinema do Straub seja um cinema sobre o movimento. Straub falou a coisa mais bonita que já ouvi sobre o cinema “saber filmar a revolução também é saber filmar o som do vento que balança a copa das árvores”. Ou seja, o que interessa a Straub é o movimento.
2)
Por outro lado, o movimento não existe.
De fato, Zenão tinha razão. Zenão elaborou um paradoxo fantástico, uma espécie de aporia contra o movimento. Zenão disse que o velocista Aquiles nunca iria alcançar uma tartaruga, uma vez que esta saísse na frente. Isso porque, como a tartaruga está a frente de Aquiles um espaço de “x” metros, enquanto Aquiles percorre esse espaço “x”, a tartaruga se locomoveu um espaço “y”, permanecendo à frente de Aquiles. Enquanto Aquiles percorre “y”, a tartaruga, por sua vez, já percorreu “z”, e assim em diante, de modo que a tartaruga sempre estará à frente de Aquiles.
Evidentemente, de forma empírica, conseguimos perceber intuitivamente que é óbvio que, em condições normais, Aquiles ultrapassará a tartaruga, mas através desse paradoxo, Zenão consegue mostrar como o movimento é coisa vã, ilusória, traiçoeira.
Para Zenão, o movimento não existe. A única coisa que existe é um Ser único e indivisível. Mas Zenão foi genial porque comprovou não somente isso, mas também que a linguagem não existe, ou melhor, que não faz sentido. O que veio a influenciar os filósofos contemporâneos como Husserl e até mesmo Wittgenstein.
A linguagem e o movimento são coisas que não existem, mas o cinema pode nos convencer que talvez elas possam ter algum sentido.
3)
Não é muito fácil para um cineasta eleata viver no Rio de Janeiro.
estou aqui em Fortaleza participando da Bienal de Danca, no Encontro Terceira Margem.
Esta sendo bem interessante para pensar as relacoes entre danca, corpo e imagem.
Num dos debates, li um breve texto em que faco breves reflexoes sobre o movimento, relacionado ao cinema que venho buscando. O texto tem tres 'movimentos': uma tese, uma antitese, e uma sintese. Eis o texto:
1)
No meu curta “Auto-Retrato do Artista Durante a Gestação”, no longo plano final que encerra o video, há três movimentos. O primeiro é o de me despir e tomar banho; o segundo, o de me olhar no espelho; o terceiro, de me sentar e aguardar. Esse plano, de mais de três minutos com câmera fixa, em geral choca, irrita e incomoda as pessoas, que julgam ser uma “exposição egocêntrica”, “lentidão desnecessária”, “caseiro, precário demais”. O primeiro movimento, de “expor-me nu”, “tomando um banho” talvez seja a expressão mais genuína e mais corajosa dos movimentos pretendidos pelo meu cinema. Exposição difícil, dolorosa, contrária à minha natureza da parcimônia e da discrição. Exposição difícil mas necessária, posto que o cinema nada mais é que “depuração”, “despojamento”, “desnudamento”. É curioso como as pessoas reclamam que este é um plano “muito sem ação”, “muito lento”, “entediante”, em que “nada acontece de relevante”, porque para mim nesse plano de três minutos de câmera estática, há todo um arco de movimento extremamente obtuso e grave.
Isto me leva a refletir sobre a natureza do movimento no cinema e na vida. As pessoas reclamam que o plano final do “auto-retrato” é “sem movimento”, “sem ação”, porque elas acham que “um filme movimentado” é um filme do Batman, em que o protagonista super-herói escala prédios, salva pessoas, corre e voa pelas ruas, arquiteta planos, faz malabarismos, ou seja, tira o nosso fôlego pela quantidade de tarefas que executa ao longo do filme. É curioso mas ao final da sessão eu geralmente me queixo que nesse tipo de filme não houve nenhuma ação, nenhum movimento. É como quando uma pessoa comenta comigo que hoje fez muitas coisas, “consertou seu celular que estava quebrado, conseguiu resolver aquela pendência no banco relativa àquele cheque que não tinha sido depositado, trocou a bolsa na loja pois com uma semana de uso ela tinha descosturado na alça, avisou à companhia de gás que a conta veio errada pois o marcador comum do prédio tinha apontado outro número”, e eu replico “nossa, você ficou todo o dia correndo sem sair do lugar?”. Cada vez mais o mundo de hoje nos empurra para um conjunto maior de tarefas, e no final das contas percebemos que não fizemos nada, não saímos do lugar. Durante dias, meses, anos, vidas a fio.
As pessoas em geral reclamam do meu cinema porque ele não tem movimento, porque os planos são muito longos e nada de importante acontece. Porque quando elas saem de casa para ir ao cinema elas querem que algo de importante aconteça nos filmes, que muita coisa aconteça. Em geral não percebem que nos filmes que vêem nada acontece de verdade. Acontece muita coisa, mas no fundo no fundo nada acontece. Como talvez ocorra na própria vida delas e que elas não se dão conta.
Acredito que nesse plano final do auto-retrato haja um longo, expressivo e grave movimento. Assim como acredito que o cinema do Straub seja um cinema sobre o movimento. Straub falou a coisa mais bonita que já ouvi sobre o cinema “saber filmar a revolução também é saber filmar o som do vento que balança a copa das árvores”. Ou seja, o que interessa a Straub é o movimento.
2)
Por outro lado, o movimento não existe.
De fato, Zenão tinha razão. Zenão elaborou um paradoxo fantástico, uma espécie de aporia contra o movimento. Zenão disse que o velocista Aquiles nunca iria alcançar uma tartaruga, uma vez que esta saísse na frente. Isso porque, como a tartaruga está a frente de Aquiles um espaço de “x” metros, enquanto Aquiles percorre esse espaço “x”, a tartaruga se locomoveu um espaço “y”, permanecendo à frente de Aquiles. Enquanto Aquiles percorre “y”, a tartaruga, por sua vez, já percorreu “z”, e assim em diante, de modo que a tartaruga sempre estará à frente de Aquiles.
Evidentemente, de forma empírica, conseguimos perceber intuitivamente que é óbvio que, em condições normais, Aquiles ultrapassará a tartaruga, mas através desse paradoxo, Zenão consegue mostrar como o movimento é coisa vã, ilusória, traiçoeira.
Para Zenão, o movimento não existe. A única coisa que existe é um Ser único e indivisível. Mas Zenão foi genial porque comprovou não somente isso, mas também que a linguagem não existe, ou melhor, que não faz sentido. O que veio a influenciar os filósofos contemporâneos como Husserl e até mesmo Wittgenstein.
A linguagem e o movimento são coisas que não existem, mas o cinema pode nos convencer que talvez elas possam ter algum sentido.
3)
Não é muito fácil para um cineasta eleata viver no Rio de Janeiro.
Comentários
Marcelo Ikeda estava em um evento de dança em fortaleza nessa semana. Ikeda e dança??
Foi exibido seu curta Abismu. Após a exibição o próprio Ikeda leu um texto que levantava algumas questões sobre o movimento e o cinema. E eu me pergunto: aonde esta o movimento nos filmes do Ikeda?
No vídeo Abismu, existe, lógico, o movimento corporal do personagem que realiza algumas ações. Dessas ações, a meu ver, o maior movimento é o olhar fixo.
Mas o movimento que me importa nos filmes do Ikeda não é corporal. É cinematográfico. Cinematográfico para alem das “quatro linhas”. Após ver um filme do Ikeda é impossível não querer refletir, discutir ou fazer cinema. Filmes que levam a fazer filmes. Isto é movimento! Os filmes do Ikeda movimentam o cinema! Movimento que leva (ou eleva) o cinema de um lugar para outro. Outro lugar próximo e misterioso.
Saio da exibição com vontade de fazer, de movimentar e de movimentar o cinema (talvez isso pareça pretensioso, mas na verdade estou falando do mínimo).
Pedro Diogenes
Caí num post antigo seu sobre Wanda, de Barbara Loden. Tenho procurado esse filme mas não acho em canto nenhum e gostaria de saber onde você viu. Pode me ajudar?
Obrigado,
Luís
vc nao viu nada...
luis,
vi o WANDA num DVD importado, mas já teve gente me dizendo que pode ser baixado no emule, caso vc tenha acesso.
Mas prefiro o cinema 'não eleata'.
Certamente uma das funções do cinema é entreter o espírito. E ainda que haja excessos de movimento dispersos numa mega-produção hollywoodiana, entendo que entreteria mais meu espírito - sem descuidar de senso crítico e consciência histórica do cinema - assistindo a ela que no plano final de seu curta.
Com todo respeito.
é interessante você tocar nesse ponto, porque recentemente li o Bergson, no Matéria e Memória, exatamente criticando esse argumento do Zenão, contra a decomposição do movimento. Claro, para Bergson, o movimento existe sim, de fato, assim como o conhecimento. O que eu quero dizer, no caso, é que "as coisas mudam e não mudam". Talvez um dia eu coloque um post aqui no blog sobre um provérbio chinês extraordinário que fala sobre isso (melhor que Zenão...). Sobre "entreter o espírito", eu pelo menos procuro entreter a mente ou o corpo (em especial o corpo), não o espírito. abs.