Meu Tio Matou um Cara

Meu Tio Matou Um Cara
De Jorge Furtado
UCI 3, qui 16 21:30
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É muito difícil falar sobre Meu Tio Matou um Cara, porque é um filme complexo que pode ser avaliado por diversas perspectivas. Por causa das minhas férias sem internet, estou escrevendo sobre o filme bem depois de tê-lo visto, algo que detesto. Mas pensando um pouco melhor, o que mais me impressionou em Meu Tio Matou um cara é como o Jorge Furtado trabalha uma questão básica da adolescência (todo o filme é um rito de passagem): a dificuldade de expressar os sentimentos para a pessoa que mais se ama. Essa distância amorosa, ver a pessoa que mais se ama se entregando em sua própria frente sem que se possa efetivamente fazer algo, é um tema profundo, tratado com delicadeza e sutileza pelo roteiro. “Parente não se escolhe. Um grande amor tbem não”. Com essa frase promocional, Jorge Furtado já apresenta seu filme como um conflito entre acaso e destino, entre até que ponto podemos efetivamente ter controle sobre nossas vidas, podemos escolher, decidir. Por isso mesmo, é um filme profundamente kieslowskiano, como o homem que copiava já o era. Mas pois bem, essa dificuldade de expressar os sentimentos se concentra na extraordinária atuação de Darlan Cunha. E não porque ele seja um bom ator (nem o é, acredito) mas simplesmente porque Furtado explorou as próprias insuficiências do ator como adubo para seu processo de criação. Ao invés de pontuações expressivas, teatrais, marcadas, o gestual, a articulação e o desenvolvimento corporal e até de fala de Darlan Cunha espelham um jogo de meios-termos, de meias-formas de expressão, de “tempos mortos” e “soluções vazias” que valorizam seu percurso. Em sua dificuldade de atuar, ele faz de sua representação espírito. Isto porque seu próprio personagem tenta mostrar que está no controle da situação, mas no fundo não está. Por fora, ele está seguro, mas por dentro há todo o espelho de uma crise, de uma fissura que não pode ser desvelada para os outros. Ele não quer que ela perceba seu sofrimento, sua dor. Por isso, por trás do jeito largado, despojado do personagem, há uma atuação com os músculos do corpo todos contraídos, especialmente os da face, o que é incrível! Numa cena frontal, vemos o menino tranqüilo deitado no sofá, mas quando ele vira o pescoço, vemos uma tensão enorme no músculo do seu pescoço, todo contraído! É nesse tipo de reação instintiva que o filme de Jorge Furtado demonstra sua paixão pelos sentimentos humanos, pelo trabalho do ator.

Jorge Furtado soube extrair a melhor lição do cinema americano: Meu Tio Matou um Cara é um filme de high-school na linha de um American Graffiti, etc, que desconstrói o aspecto linear, narrativo, comercial do roteiro para revelar-se tanto um trabalho em continuidade com seus temas de sempre quanto um olhar íntimo sobre as ambigüidades/fraquezas do ser humano. Meu Tio Matou um Cara é tbem quase um filme de Rohmer, em como o falar é pequeno em relação aos sentimentos, como a linguagem é insuficiente em relação às intenções, sobre o discurso ético (veja o final), sobre como tudo é uma representação (o papel da montagem na seqüência de fotos), na suposta linearidade da narrativa e no discurso amoroso. Mas principalmente sobre a ética. Darlan Cunha queria ficar com sua melhor amiga, mas não queria 1) ferir os sentimentos dela; 2) não trapacear seu melhor amigo. O menino negro é então assustadoramente consciente da tragicidade de sua posição: sua profunda auto-consciência estimula a auto-reflexividade do filme. Ele é tão passivo quanto o espectador, e sua vida se preenche de acasos e de caminhos não esperados, para que “casualmente” ele seja premiado por “tanto sentir” e por tanto perseguir a seu modo seu objetivo.

Há muito mais a se falar sobre o filme, como i) o próprio percurso do diretor (um filme como um meio-termo, ou a busca de um equilíbrio entre Houve uma vez dois verões e o homem que copiava, mas nitidamente mais próximo do segundo), ii) uma proposta de cinema que trilha os caminhos da Casa de Cinema nos anos 80 (é só comparar com Verdes Anos); iii) como a questão racial é tratada de forma consciente no filme (seguindo o homem que copiava, inclusive); iv) como a parte masculina (a trama policialesca, os atributos da deborah secco) é mesclada com a parte feminina (a love story) numa proposta de cinema comercial; v) como um filme com um título como “meu tio matou um cara” se revela uma história de amor; vi) como num cinema brasileiro de estetização ou exploração da violência, uma “morte” é motivo de revalorização da amizade, ou do reencontro; vii) sobre o papel da montagem na ordenação das fotografias pelo detetive para provar se o d secco estava traindo ou não; viii) a tensão social, a violência no ônibus e nos arredores da penitenciária; ix) o fato de ter duas produtoras (natasha e casa de cinema) fez com que o filme tenha um orçamento o dobro do que realmente era preciso para fazê-lo; x) a valorização da voz em off como sinal de desvelamento e intimidade; xi) como o filme usa referências com um cinema de gênero, em especial com o noir: o assassinato, o detetive, Deborah Secco como femme fatale, etc. E muito mais. Um filme memorável.

Nota: fato tosco - o UCI, atendimento péssimo, cortaram o filme antes dos créditos finais, pipoca fria....uma merda esse UCI!!!

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